Por Newsclick
Do Brasil de Fato
A pandemia da covid-19 e a resposta governamental mal concebida e insensível deixou o povo indiano devastado. A perda sem precedentes de empregos e renda, causadas por repetidos lockdowns, empurrou grande parte da população para a beira da fome.
Enquanto isso, uma administração tateante ofereceu auxílio inadequado (em termos de grãos alimentícios) e alguma ajuda financeira por poucos meses destinada apenas a uma porção da população.
De todo o amplo país emergiram histórias assustadoras de pessoas se alimentando de grama e tubérculos, mendigando por comida entre vizinhos e casas de caridade, tomando empréstimos com taxas brutais de juros para sobreviver ou, ainda, cortando refeições.
Apesar da colheita recorde de grãos, a distribuição foi insuficiente no contexto da pandemia / Newsclick
Dentre os mais afetados, estavam as comunidades mais marginalizadas, como tribos localizadas em florestas, agricultores sem-terra, industriais cujas fábricas permaneceram fechadas e o vasto segmento da população que depende da renda diária proveniente de serviços informais ou de setores como construção civil e hotelaria.
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Bhuwaneshwari, da comunidade florestal de Pulayar, mora com sua família dentro da Reserva de Tigres Anamalai, no estado indiano de Tamil Nadu, ao sul do país.
Sem poder acessar a ajuda do governo por não possuir o “cartão de ração” familiar [algo como um vale alimentação concedido pelo governo] e com a impossibilidade de vender sua produção devido às restrições do lockdown, ela relata que a família sobrevive de mingau feito com tubérculos.
“Eu caminho 10km floresta adentro todas as manhãs para coletar produtos. Demoro mais ou menos duas horas para chegar ao local.
Começamos às oito da manhã e retornamos por volta das cinco da tarde. Durante o lockdown, nós colhemos amendoim e o estocamos na esperança de que possamos retirá-lo mais tarde e vendê-lo no mandi (mercado rural)”, Bhuwaneshwari explicou à reportagem da Newsclick.
“Por quanto tempo poderemos sobreviver destes tubérculos?”, perguntou em desespero.
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Como muitas outras comunidades rurais da Índia, sua única fonte de renda é a produção da floresta. A suspensão do sistema de transporte público durante o lockdown cortou sua fonte de sustento e a isolou do resto da sociedade.
Em Tamil Nadu, mais de 40 mil famílias residentes em comunidades tribais deste mesmo tipo não possuem um cartão de ração, o que que lhes daria o direito a grãos alimentícios subsidiados.
Safra recorde, mas agricultores ainda passam fome
Trabalhadores sem-terra e pequenos trabalhadores rurais também enfrentam o impacto da crise. Mesmo que o cultivo tenha continuado ao longo do ano e a Índia tenha produzido colheita recorde de grãos alimentícios – cerca de 395 milhões de toneladas –, o salário de agricultores e o magro retorno financeiro de pequenos trabalhadores rurais caiu, enquanto que o endividamento cresceu. Há por volta de 140 milhões de trabalhadores sem-terra na Índia.
Mohammad Khan, um trabalhador rural do Distrito de 24 Pargana, estado de West Bengal, tem 2,5 bighas (cerca de 0,4 acres) de terra.
Ele aluga 1,5 bighas e cultiva vegetais no restante do terreno. O lockdown e as medidas restritivas fizeram com que ele lutasse para conseguir comida, uma vez que não havia transporte para sua escassa safra de vegetais.
“A fome é perene na minha cabana. Pular refeições é um hábito regular”, ele diz. O ciclone Yaas, que atingiu a região costeira em maio, danificou sua cabana decrépita. Seu pedaço de terra foi inundado, dando um golpe em qualquer chance de escapar das garras da fome.
Vendedor serve chá em Tamil Nadu / Newsclick
S. Somas, um trabalhador rural no distrito de Kanyakumari, estado de Tamil Nadu, depende tão somente de seus ganhos diários derivados do seu trabalho nos campos de arroz ou banana e nas plantações de borracha.
Contudo, ele e sua família sofreram imensamente durante os dois lockdowns na Índia (o primeiro em março de 2020 e o segundo em abril deste ano) por conta dos poucos dias de trabalho e apoio insuficiente do governo.
“Desde março de 2020, o número de dias que nós temos trabalhado reduziu-se consideravelmente. A Lei Nacional de Garantia de Emprego Rural Mahatma Gandhi (um programa de garantia de emprego em áreas rurais) também foi interrompida por boa parte do ano”, Somas diz.
“Os donos de fazendas sofreram perdas devido à queda nos preços. Nós dependemos deles para termos emprego e, consequentemente, nosso rendimento também foi atingido”, acrescenta.
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A Índia já sofria com a fome crônica e generalizada mesmo antes da pandemia. De acordo com estimativa de 2020 feita pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, pelo menos 189 milhões de indianos sofreram de fome severa no último ano. O Index Global de Fome 2020 colocou a Índia na 94ª posição dentre 107 países afetados por fome generalizada.
A Pesquisa Nacional de Família e Saúde de 2015/2016 encontrou que 59% das crianças com mais de cinco anos de idade eram anêmicas, bem como 53% das mulheres. Mais de 38% das crianças estavam atrofiadas e mais ou menos 20% estavam emaciadas – ambos indicadores de desnutrição crônica. O que a pandemia fez foi piorar a situação, para a qual o governo não teve resposta.
Índia urbana também sofre
Não foram apenas as áreas rurais – onde dois terços dos indianos vivem – que sofreram. Nas áreas urbanas, as difíceis restrições do lockdown brutalmente imposto à população e o sinal verde dado aos empregadores para demitir trabalhadores sem dar qualquer compensação financeira deixou milhões no limite do desamparo total, chegando próximos à morte.
As áreas urbanas possuem também milhões de trabalhadores informais, inclusive prestadores de serviço, pequenos lojistas, vendedores e pessoal de manutenção, além de trabalhadores da indústria.
Mitesh Prajapati, de 30 anos, que trabalha com polimento de diamantes em Surat, Gujarat, era o único membro de sua família, formada por quatro pessoas, a ter alguma renda. Após o lockdown do ano passado, ele não conseguia nenhum emprego, situação de muitos no setor de joias.
A família sobreviveu por sete meses por meio de empréstimos de comida com vizinhos, ou tomando empréstimos financeiros. Mas Prajapati estava tendo dificuldades para pagar o tratamento de sua mãe adoentada. No começo de julho do ano passado, ele também se adoentou e foi instruído a fazer o teste para covid-19.
Contudo, sem condições de arcar com o custo adicional de seu tratamento, pulou em um rio no dia 4 de julho de 2020, abraçando a morte em vez de carregar a dor de viver.
“Ele estava sob enorme pressão psicológica. Para além das despesas usuais, nossa mãe está doente e precisa de medicamentos todo mês. Quando o médico sugeriu que ele pudesse estar com covid-19 e, por isso, deveria fazer o teste, ele viu isto como mais um gasto e não aguentou essa possibilidade”, Hiteshi Prajapati, irmão de Mitesh, disse à Newsclick.
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Em Aligarth, cidade no norte do estado de Uttar Pradesh, a reportagem encontrou Guddi, de 43 anos, mãe de cinco crianças. Ela estava no hospital do distrito após batalhar contra a fome por dois meses. Seu marido, o único provedor da família, morreu no ano passado em consequência da covid-19, forçando-a a ganhar a vida como operária com renda de 4000 rúpias (pouco mais de R$ 280,00) por mês.
Porém a fábrica fechou meses atrás devido ao lockdown. Seu filho mais velho, Ajay (22 anos) começou a trabalhar por diária em um canteiro de obras, mas a segunda onda da pandemia levou seu emprego. Suas economias foram exauridas gradualmente.
“A fome e as doenças nos afetaram tanto que não podíamos nem mesmo caminhar ou falar adequadamente. A situação piorou depois que nosso vizinho parou de nos dar qualquer coisa que fosse. Nós implorávamos por comida, mas por quanto tempo eles conseguiriam nos alimentar enquanto todos estão lutando pra sobreviver?”, recorda uma Guddi desnorteada, hoje com saúde estável.
Ela relata como toda a sua família sobreviveu apenas com água por dias a fio. Eles foram resgatados por uma ONG local e levados ao hospital.
Entre 2015 e 2016, a anemia atingiu principalmente crianças e mulheres / Newsclick
Nessas áreas, trabalhadores do setor informal também sofreram. Vimla Devi, secretária do lar em Bhopal (no estado de Madhya Pradesh) e seu marido, um trabalhador da construção civil, perderam seus empregos.
Com dois bebês para criar, ela reclamou com amargura sobre a falta de qualquer ajuda governamental.
“Virtualmente, o segundo lockdown nos empurrou à beira da fome. Se as ONGs e os grupos sociais não tivessem nos ajudado, teríamos morrido”, Ram Suresh Yadav, presidente da Federação Nacional de Carregadores de Ferrovias, disse ao Newsclick em Lucknow, capital de Uttar Pradesh.
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Neeru, da cidade de Samba, no território da União Indiana de Jammu e Caxemira, resumiu o desespero ao falar sobre seu pai, Deshraj Kumar, de 63 anos, comerciante de verduras que perdeu a renda durante os lockdowns, contraiu uma dívida enorme e agora lava utensílios em casamentos.
“Houve dias nos quais ele pensou que era melhor acabar com a própria vida do que sobreviver desta maneira. Mas eu continuei afirmando para mim mesmo que as coisas ficariam bem. Estava errado. Como quitaríamos nossa dívida? Nós não temos economias e o coronavírus não parece ir embora. Eu não quero que meu pai passe fome novamente”, ela disse.
Depósitos transbordando com grãos alimentícios
Se a Índia teve uma colheita tão generosa, por que as pessoas estavam vivendo esta escala de fome? Impulsionados pela produção recorde de grãos, os armazéns do governo estavam transbordando durante a pandemia.
Segundo dados mensais do próprio governo do país, em abril e maio de 2020, quando as restrições mais severas estavam em vigor, os estoques de grãos alimentícios eram de 57 milhões de toneladas e 64,4 milhões de toneladas, respectivamente. Isto é cerca de duas ou três vezes as normas estatutárias de estocagem que incluem reservas estratégicas.
No entanto, o governo se recusou a distribuir a produção. Eles anunciaram que somente 5 kg de arroz/trigo seriam dados a mais do que a cota usual de grãos doados por meio do sistema público de distribuição. Isso foi não somente insuficiente, mas também ignorou a dura realidade de que as pessoas não têm óleo e gás de cozinha dentre outras coisas que permitem a preparação de alimentos.
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Em junho de 2021, os estoques de grãos alimentícios alcançaram recorde de quase 91 milhões de toneladas. Mesmo assim, o governo continuou a segurá-los, recusando-se a distribuí-los para pessoas famintas.
Sindicatos repetidamente demandaram que itens básicos, como óleo de cozinha, fossem incluídos no sistema público de distribuição. No entanto, isso passou despercebido, assim como a demanda por algum dinheiro para ajudar as famílias.
Vendedor nas ruas de Chennai / Newsclick
Luta por alívio – e mudança
Enquanto o povo do país cambaleava sob a pandemia mortal e seus governos os abandonavam à sua própria sorte, as forças de esquerda emergiram como lutadores mais consistentes pelas vida e sobrevivência.
Ocorreram amplas agitações pela universalização do sistema de distribuição, expansão das comodities que fazem parte do sistema, aumento da quantidade de grãos alimentícios para 10 kg mensais por pessoa (atualmente, distribui-se 5 kg mensais por pessoa), para o governo prover com auxílio direto no valor de 7500 rúpias (cerca de R$ 1430,00) mensais todas as famílias sem renda e que não pagam impostos, além de demandarem a retirada das leis antipovo aprovadas pelo governo central.
Apesar das restrições da pandemia, protestos em áreas residenciais de trabalhadores e nos portões de fábricas foram realizadas ao longo de 2020. Em 26 de novembro, uma greve geral em toda a Índia foi realizada com sucesso. Desde novembro, os agricultores também estão nas estradas contra a imposição da corporativização da agricultura por meio de três leis polêmicas. Agora, essas diferentes linhas de resistência aglutinaram-se.
Organizações de esquerda têm também estado na vanguarda do fornecimento de ajuda de a famílias em dificuldades. Isto tem sido feito de maneira exemplar pelo governo do estado de Kerala, que é de esquerda. Já nas primeiras duas semanas de lockdown, 1255 cozinhas comunitárias foram construídas por voluntários, o que proporcionou 280 mil refeições por dia.
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No início do período de restrições, antes que os kits de mantimentos e rações fornecidos pelo governo estadual começassem a chegar às famílias, essas cozinhas eram o principal meio pelo qual Kerala garantia que seu povo não passasse fome.
Essas cozinhas foram uma benção para os quase meio milhão de trabalhadores migrantes (chamados em Kerala de “trabalhadores convidados”), diferentemente de outros estados, nos quais migrantes sofreram imensamente. O governo estadual também construiu mais de mil Janajkeeva Hotels (Hotéis do Povo), que oferecem comida a preços subsidiados.
Além dos esforços governamentais, a esquerda e organizações progressistas distribuem ajudas materiais, incluindo alimentos e refeições diárias como sopas, a família desamparadas.
Por exemplo, a Federação da Juventude Democrática da Índia continuou ativamente com seu projeto Hridayapoorvam, fornecendo almoços a pacientes e seus acompanhantes em hospitais universitários governamentais. Os ativistas da organização também tomaram medidas para fornecer marmitas e mantimentos para os necessitados.
O sucesso de Kerala no combate à insegurança alimentar durante a pandemia se deve tanto aos esforços da comunidade quanto à administração pública eficiente. Em West Bengal, os “voluntários vermelhos” mobilizaram-se em grande escala para ajudar os que sofriam, providenciando atenção médica e fornecendo diariamente alimentos necessários.
Da mesma forma, o Centro de Sindicatos Indianos forneceu kits de alimentos e itens essenciais em quase todos os estados da Índia durante três meses com a ajuda de doações do povo.
A crise econômica criada pelo governo de Modi foi caracterizada por altos níveis de desemprego, falta de alimentos e direitos básicos como saúde e educação para uma grande parte de população.
Ao mesmo tempo, os escalões superiores da sociedade, especialmente figurões corporativos, acumularam enormes lucros. Essa extrema desigualdade criou um sentimento de raiva e descontentamento que se fará sentir nos próximos meses.
*[Reportagem de Neelambaran A e Sruti MD em Tamil Nadu; Sandip Chakraborty em West Bengal; Abdul Alim Jafri em Uttar Pradesh; Damayantee Dhar em Gujarat; Azhar Moideen em Kerala; Kashif Kakvi em Madhya Pradesh; e Sagrika Kissu e Jammu & Kashmir]
A fome no mundo é uma série colaborativa produzida por ARG Medios, Brasil de Fato, Breakthrough News, Madaar, New Frame, Newsclick e Peoples Dispatch.
Edição: Arturo Hartmann