Governo desconhece papel estratégico do Consea, avalia presidente do Conselho

Em Medida Provisória, Bolsonaro extingue órgão que prestava consultoria em temas como agrotóxicos e agricultura familiar

 

Por Nadine Nascimento

 

Combate à fome, alimentação saudável, merenda escolar, agricultura familiar, presença de agrotóxicos ou de componentes geneticamente modificados em alimentos estão entre os assuntos abordados pelo Conselho que tem futuro incerto no governo Bolsonaro.

Com a Medida Provisória nº 870, publicada no último dia 2 de janeiro, o governo extingue o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), órgão ligado à sociedade civil e que prestava consultoria direta ao presidente da República com relação a diversos temas relacionados à saúde e alimentação.

Segundo a presidente do Conselho, Elisabetta Recine, falta compreensão da importância estratégica do Consea. “Não só para a saúde dos indivíduos, mas para a autonomia e soberania do país”, completa.

O Consea foi criado em 1993, durante o governo Itamar Franco, mas acabou revogado pelo sucessor Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), sendo reorganizado somente em 2006, no primeiro governo Lula.

Em 2018, o Conselho se posicionou contra o chamado “Pacote do Veneno” (Projeto de Lei nº 6299/2002), que propunha alterações na legislação sobre agrotóxicos e contribuiu com o texto do PL 6670/2016, que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA), ambos aprovados em comissão especial.

Na entrevista, Recine fala sobre as negociações do Conselho e da mobilização da sociedade civil para sensibilizar o Congresso a votar pela permanência do Consea alterando a MP. Segundo ela, é preciso que o governo Federal “compreenda as consequências negativas da extinção do Conselho”.

Confira a íntegra da entrevista:

Campanha: Qual a importância do Consea para a população?

Elisabetta Recine: O Consea tem uma história longa. Ele é resultado da mobilização da sociedade brasileira no início da década de 1990. Há um processo de mobilização muito importante em relação à erradicação da fome, que é simultâneo ao momento político que dá origem ao impeachment do ex-presidente Collor. O Conselho surge para que a sociedade civil faça um diálogo com o governo e discuta ações que seriam necessárias para erradicar a fome. Ele é extinto no início do governo FHC, mas no início do primeiro mandato do presidente Lula é reinstalado em uma nova configuração, em um patamar mais institucional. Foi um espaço essencial para a implementação do Programa Fome Zero, por exemplo.

Em 2006, o Conselho faz a proposição da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, que é aprovada por unanimidade no Congresso Nacional. Uma confluência dos diferentes setores e partidos do quanto é fundamental ter uma articulação política para erradicar a fome e, ir além disso, instalando e ampliando políticas públicas que garantam a produção, o acesso e o consumo de alimentos adequados e saudáveis para toda a população brasileira.

O Consea é o espaço onde diferentes setores da sociedade civil, produção, comercialização, processamento, ou de acesso a alimentos se encontram para fazer propostas, [levar] demandas da sociedade civil. É um canal de acesso privilegiado do governo às realidades locais, esse é o grande papel que o Consea Nacional e os Conselhos Estaduais desempenham.

E como se explica que o governo atual queira extingui-lo?

Acho que há uma má compreensão da importância estratégica [do Consea] para o país. Não há como negar que ter uma população com acesso à alimentação saudável e adequada é uma questão estratégica, não só para a saúde dos indivíduos, mas para a autonomia e soberania do país. Há uma análise equivocada sobre quem ganha com isso, porque deveria ser todos nós, e não o grupo A ou B.

 

Elisabetta Recine é presidente do Consea desde 2017

 

Quais as principais contribuições do Conselho nas políticas públicas, especialmente na pauta dos agrotóxicos?

As discussões no âmbito do Consea, e que geraram o conceito de segurança alimentar e nutricional, fizeram pontes entre o conhecimento e as práticas relacionadas à produção de alimentos e à saúde, nutrição e consumo de alimentos. Isso, por exemplo, proporcionou toda a discussão que levou ao aprimoramento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Com o tempo, o PNAE foi sendo pensado no sentido de não só “matar a fome”, mas ser um promotor de alimentação saudável, com alimentos locais, produzidos pela agricultura familiar.

Esse debate colocou em pauta os modelos produtivos, os impactos da produção intensiva – que utiliza insumos químicos, agrotóxicos e as sementes geneticamente modificadas – em contraposição aos conhecimentos tradicionais, que viabilizam uma produção de alimentos sustentável, tanto do ponto de vista ambiental, mas também econômico e social. Isso nos faz pensar o quanto nos tornamos dependentes e, portanto, vulneráveis às transnacionais que detêm tecnologia, e qual o impacto disso do ponto de vista da soberania do país, da sustentabilidade ambiental, econômica etc. Então, todas essas discussões foram abrigadas ou fomentadas pelo Consea, e são fundamentais para que alimentação saudável seja um bem público garantido à população brasileira.

Em 2018, dois Projetos de Lei completamente opostos foram aprovados em comissões especiais. Um que desregula o uso de agrotóxicos no país, o chamado Pacote do Veneno (PL 6299/02), e outro que propõe a redução do uso de agrotóxicos, a PNaRA (PL 6670/16). Como está o cenário para aprovação dos projetos este ano?

Acho que o cenário é muito desafiador. Temos um novo Congresso com uma taxa de renovação muito importante, renovado tanto para os setores que apoiaram o Pacote do Veneno, como também para aqueles que são sensíveis ou historicamente vinculados a propostas relacionadas a PNaRa.

Se o Brasil quer se manter enquanto um país que tem uma produção de alimentos suficiente e adequada para alimentar sua população, mas também para exportar para outros países – há uma demanda de mercados importantíssimos para produção saudável e sustentável -, o Brasil vai ter que olhar para isso. Acho que toda a mobilização que gerou a aprovação da PNaRA, na Comissão Especial, vai precisar ser ampliada para a chegada em plenário. Precisamos ampliar a base social de sustentação dessa proposta.

Precisamos fazer com que a bandeira da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida chegue a quem ainda não chegou. Falar que os alimentos orgânicos só são acessíveis para as classes médias é um erro. Temos que mostrar que apoiar os processos agroecológicos de produção, o reposicionamento dos canais de distribuição e abastecimento locais, a ampliação das feiras, fará com que esses alimentos cheguem a grupos que não têm acesso.

A sociedade civil está mobilizada para tentar recuperar o Consea no Congresso?

Acredito que sim! Há mobilizações individuais, mas há inúmeras organizações nacionais que já se manifestaram publicamente. Há também os Conseas estaduais, que estão com agendas marcadas de mobilização e de conversas com os deputados que vão apreciar a Medida Provisória.

A ausência do Consea fere a lógica do direito de articulação e participação social. Essa mobilização precisa furar o bloqueio e chegar no Congresso Nacional para que se sensibilize e perceba a importância de alterar a Medida Provisória, e precisa chegar no governo Federal, para que [ele] compreenda as consequências negativas da extinção do Conselho. Há um processo de mobilização importante, mas que precisa chegar em setores estratégicos.

 

Edição: Cecília Figueiredo*

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