Karapiru Awa Guajá sobreviveu às perseguições contra seu povo, mas não ao vírus invasor

Por Luma Ribeiro Prado
De Olho nos Ruralistas

— Os karai [não indígenas] mataram a minha esposa e meu filho. Eles atiraram neles na mata. Atiraram com arma de fogo feita de ferro. Eu era o pai. Quem morreu foi um antigo filho meu. Os karai o mataram com arma de fogo. Nós corremos e eles foram atrás de nós e os mataram. Os karai matam até crianças Awa! Mataram meu filho! Eu andei muito pela mata. Às vezes era muito calor e sentia sede. De longe eu ficava observando os karai. Via suas plantações de mandioca e milho. E pensava que um dia ia matá-los. Andava muito pela floresta: a floresta é grande! Muitas vezes eu estava tão perto dos karai que escutava o galo cantar. Por vezes eu passava fome.

Esse relato feito em 2013 por Karapiru Awá Guajá é de um sobrevivente, mas não de um imortal: em julho, ele perdeu a vida para a Covid-19. O guerreiro Awá Guajá testemunhou o massacre de sua família e, para não sucumbir aos ataques violentos das frentes de expansão, fugiu e se escondeu por uma década nas matas, florestas e cidades do sul do Maranhão à Bahia.

Karapiru não resistiu aos sintomas agressivos da Covid e faleceu em 17 de julho, apesar de ter tomado as duas doses da vacina. Desde março de 2020, ao menos outros 1.135 indígenas morreram em decorrência da pandemia. O governo negacionista de Jair Bolsonaro demorou para atender os vulneráveis indígenas na imunização. De Olho nos Ruralistas mostrou que, ao contrário, o governo federal incentivou o falso tratamento precoce: “Pazuello mentiu à CPI sobre distribuição de cloroquina para indígenas“.

APÓS DEZ ANOS EM JORNADA SOLITÁRIA, ELE ENCONTROU FILHO QUE JULGAVA MORTO

O encontro de pai com o filho, que, no início, pensavam que era o neto. (Montagem: Documentário Serras da Desordem e Estadão)

Karapiru sobreviveu ao massacre de sua família capitaneado por posseiros que invadiram o território dos Awá Guajá, nas franjas da Floresta Amazônica no Maranhão. Para sobreviver, ele fugiu com uma bala alojada nas costas e iniciou uma jornada solitária de dez anos nas serras do Brasil Central até ser encontrado na Bahia, em 1988.

A antropóloga Renata Otto registrou a saga no Memorial Vagalumes: desconfiando que o andarilho solitário fosse um Awá Canoeiro ou Awá Guajá, diante do local em que ele foi encontrado e das palavras em tupi que pronunciou, o sertanista Sydney Possuelo convocou um funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) para identificá-lo.

Tiramuku (Benvindo Guajá) foi a Brasília reconhecer o homem e encontrou o próprio pai. O filho de Karapiru também sobreviveu à emboscada e havia sido criado pelos karai do posto da aldeia Cocal, onde naquela época trabalhava. Karapiru, então, voltou a morar com os seus. Primeiro, na TI Alto Turiaçu; o restante da vida, na TI Caru. Sua história foi descrita no filme Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci, ao lado de outros Awá Guajá.

Karapiru não foi o único de seu povo a adotar a fuga constante como estratégia de sobrevivência. Para resistir à política de extermínio do governo militar, famílias Awa Guajá dispersaram-se em pequenos grupos e se refugiaram em ilhas de matas preservadas no Maranhão.

PROJETO CARAJÁS, DA DITADURA DE 1964, IMPACTOU DIRETAMENTE A ETNIA

Isso ocorreu porque o lema “uma terra sem homens, para homens sem terra”, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), atraiu levas de migrantes da seca para a Floresta Amazônica maranhense. A migração de não-indígenas para a região intensificou-se com o Programa Grande Carajás, desenvolvido pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce — hoje a privatizada Vale — no governo do ditador João Baptista Figueiredo.

Carajás impactou uma área de quase 1 milhão de quilômetros quadrados entre os Rios Xingu, Tocantins e Araguaia, considerada, naquela época, uma das maiores jazidas de ferro do mundo. Obras de infraestrutura foram realizadas pelo governo ditatorial para explorar de maneira sistemática o minério e escoar a produção. A Estrada de Ferro Carajás cortou o território Awá, enquanto as hidrelétricas de Tucuruí e o Porto de Ponta Madeira afetaram mais de uma dezena de povos originários e comunidades tradicionais.

Junto da mineração, as vias de acesso deveriam orientar a ocupação colonial dos territórios e fomentar a agropecuária na região. De acordo com as diretrizes do Programa de Integração Nacional, povos indígenas e florestas eram considerados empecilhos ao desenvolvimento, como se pode ver na oposição hierárquica entre áreas florestais e grandes crateras de mineração e estradas, no vídeo de propaganda do Projeto Grande Carajás:

https://youtu.be/6jJJWOoDxF8

Os remanescentes Awá, que sobreviveram às doenças dos karai e escaparam das armas de fogo dos invasores, foram abrigados nas TIs Alto Turiaçu e Caru, cujos estudos foram iniciados neste contexto, de acordo com os interesses da Vale do Rio Doce. O povo que tradicionalmente organizava-se em pequenos agrupamentos, com o avanço das frentes de expansão, adotou a vida nômade — assentada na caça, coleta e pesca — e se conformou em grandes assentamentos nos territórios demarcados, definidos segundo interesses alheios.

MADEIREIROS E POSSEIROS INVADEM TERRA INDÍGENA DOS AWÁ GUAJÁ

Como tantos povos indígenas, os Awá Guajá são sobreviventes de genocídios. Seu território ancestral foi atravessado pelas BR-222, BR-316, pela Belém-Brasília (BR-110), e sangrado pela Estrada de Ferro Carajás. Os Awá habitam hoje as Terras Indígenas Alto Turiaçu, Caru, Awá e Araribóia.

As três últimas TIs têm registro de grupos Awá isolados, que recusam sistematicamente o contato com não-indígenas. Desses, entre 40 e 60 pessoas partilham a T.I Araribóia com os Tenetehara, mais conhecidos como Guajajara. Conjectura-se que os “isolados” carregam na memória o massacre que testemunharam de seu povo e desejam afastá-lo para longe.

“Ka’a zar ukyze wà – Os Donos da Floresta em Perigo”, dirigido por Flay Guajajara, mostra a destruição da região. (Imagem: Reprodução)

Flay Guajajara, Edivan dos Santos Guajajara e Erisvan Bone Guajajara, no documentário “Ka’a zar ukyze wà – Os Donos da Floresta em Perigo“, chamam a atenção para as ameaças à autodeterminação e à sobrevivência de seus vizinhos em isolamento voluntário.

Madeireiros, posseiros, traficantes de drogas e caçadores desmatam os resquícios da Floresta Amazônica maranhense e ameaçam a vida dos Awá Guajá e dos Guajajara. A TI Araribóia tem 38% da cobertura vegetal comprometida, segundo estudo de 2019 do Instituto Socioambiental (ISA) e do Joint Research Centre.

Outro integrante da etnia, Awá To’o, conhece bem a interdependência entre seu povo e a Floresta Amazônica. Para a Survival, ele demonstrou desassossego:

— Nós vivemos nas profundezas da floresta e estamos preocupados, na medida em que forasteiros se aproximam. Nós estamos sempre fugindo. Sem a nossa floresta, nós não somos ninguém e não temos como sobreviver.

Karapiru fugiu para longe de sua terra para continuar vivendo. Os Awá Guajá e os Guajajara pedem a desintrusão de seus territórios demarcados e reivindicam políticas específicas de enfrentamento à Covid-19. Os Awá isolados passam fome, sede, tristeza, sentem saudade dos parentes e calam o choro das crianças para permanecerem em refúgio, como relata o antropólogo Uirá Garcia.

INICIATIVAS BUSCAM TIRAR INVISIBILIDADE DAS VÍTIMAS INDÍGENAS

Os povos indígenas se mobilizaram por vacinação e cuidados. (Foto – Divulgação)

A favor da vida e da memória, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizações de base estabelecidas em todo o território e apoiadores levantam-se e organizam-se. Mulheres e homens indígenas continuam a erguer barreiras sanitárias improvisadas, expulsando invasores e organizando campanhas de arrecadação de fundos.

A Justiça também tem sido acionada. A Apib entrou com uma Ação de Descumprimento de Princípio Fundamental no Supremo Tribunal Federal (STF) exigindo ações de combate à pandemia, por meio da manifestação Levante pela Terra.

Os Awá-Guajá e Guajajara pediram providências à  Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em luta por um registro mais preciso do número de vítimas e pela preservação de suas histórias, o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena publica diariamente o resumo dos casos e o Memorial Vagalumes apresenta biografias dos parentes que se foram pela doença.

Somando-se a esse esforço, este observatório registrou Cem Faces Indígenas mortas por Covid e destacou as histórias de professores indígenas que morreram durante a pandemia.

| Luma Ribeiro Prado é historiadora e repórter do De Olho nos Ruralistas. |

Foto principal (Survival International): Karapiru Awá Guajá passou dez anos na mata fugindo de invasores 

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