A desregulamentação de agrotóxicos no país foi tema de um dos debates virtuais realizados pela Campanha Contra os Agrotóxicos em 2020. Confira trechos da participação da pesquisadora Aline Gurgel, do Laboratório de Saúde, Ambiente e Trabalho LASAT/ IAM da Fiocruz:
Como funciona a liberação de agrotóxicos no Brasil
Hoje no Brasil a gente ainda tem estruturado um sistema tripartite para registro de agrotóxicos, que é composto por três Ministérios: o Ministério da Saúde, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura. Esses três Ministérios fazem avaliação de um produto que uma determinada empresa está interessada em registrar no Brasil. A empresa entra com pedido de registro e cada Ministério prepara um dossiê com uma avaliação. O Ministério da Agricultura avalia a eficácia Agronômica; o Ministério do Meio Ambiente faz a avaliação ecotoxicológica, avaliando os impactos para os ecossistemas; e o Ministério da Saúde faz uma avaliação toxicológica, para avaliar o potencial de danos para a saúde humana.
Cada Ministério, por meio das suas agências (o Ibama, a Anvisa), realiza essa análise, e emite um parecer dizendo se é favorável ou não à liberação daquele produto. Precisa haver unanimidade para que o registro seja concedido. Inclusive essa é uma das mudanças que está sendo proposta pelo pacote do veneno, que esse sistema tripartite seja revisto. A proposta busca tirar o poder principalmente da Anvisa, que é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que faz a parte de avaliação dos impactos à saúde nesse processo de regulação. Aí caberia à Anvisa somente um papel opinativo nesses processos de registro e avaliação, não teria o poder de veto. Isso é uma grande ameaça, porque as decisões relativas à pasta da saúde vão acabar sendo delegadas a outros Ministérios, principalmente ao Ministério da Agricultura, que não possui expertise técnica e nem tem o papel institucional de se posicionar tecnicamente nos temas relacionados à saúde humana. Isso coloca, inclusive, uma sobrecarga, uma pressão, sobre os técnicos que trabalham nesse Mistério, que vão ter que acumular conhecimentos em outras áreas para poder emitir esses pareceres. Então nosso modelo tripartite precisa ser defendido, porque um modelo como esse, que depende de uma decisão colegiada, minimiza a possibilidade que as agências ajam para atender exclusivamente aos interesses econômicos do setor regulado, que a gente sabe que existem, fazem parte do mercado.
Então, com essa proposta de centralidade sobre o MAPA, os modelos de regulação centralizados em uma única agência, a gente sabe que eles são muito mais suscetíveis às influências externas. Isso realmente apresenta um perigo.
A boiada dos venenos
A liberação a toque de caixa de produtos no ano de 2019 e 2020, isso é só a ponta do iceberg. Na verdade, a gente sabe que existe, de fato, uma estratégia de desregulamentação em curso no país, e não apenas relacionada à legislação de agrotóxicos. A gente tem observado a flexibilização das legislações ambientais, previdenciárias, trabalhistas, com redução de direitos. E esta flexibilização é sustentada por um discurso economicista, que se dá, muitas vezes, em detrimento da proteção da saúde e do ambiente.
Há uma pressão imposta pelo modo capitalista de produção para que o Brasil, que é um país de economia periférica, cuja economia baseia-se em commodities agrícolas e minerais, para que o país reduza e flexibilize essas normativas, que são falsamente entendidas e afirmadas como obstáculos ao crescimento econômico. Na verdade são medidas necessárias para proteção da vida.
A recente declaração do Ministro do Meio Ambiente, naquela fatídica reunião que todos nós ouvimos massivamente nas últimas semanas, de que o Governo deveria aproveitar a oportunidade, o momento em que o foco da sociedade está voltado para o combate à pandemia de Covid-19, para simplificar regras e normas, revela que a flexibilização é uma política de Estado e meta de governo. E é um grave indicativo da necessidade imposta pelo capital internacional de reduzir os dispositivos legais que conferem alguma proteção ambiental e para a saúde humana.
Isso afeta particularmente aqueles grupos em maior situação de vulnerabilidade, que são os trabalhadores, os trabalhadores rurais expostos rotineiramente aos agrotóxicos, que são crianças, povos e comunidades tradicionais como indígenas quilombolas. A gente sabe que esses danos não se distribuem igualmente nos territórios e que existem grupos populacionais em maior situação de vulnerabilidade, e que são muito mais ameaçados por essas medidas que relaxam essas normativas, que têm como papel principal a proteção da vida, do ambiente, da saúde. No cenário da pandemia, é extremamente preocupante que as nossas preocupações não estejam integralmente focadas na resolução desta problemática. Pior, que o cenário a seja visto como uma oportunidade pelo governo para o relaxamento das normas.
Falando especificamente dos agrotóxicos… Em anos recentes, está em curso uma redução do controle do Estado sobre a regulação dessas substâncias. Se a gente analisar somente o período pós-impeachment de Dilma, foram adotadas uma série de medidas com o objetivo de enfraquecer a atuação estatal, que tiveram como objetivo primário ou como reflexos esse enfraquecimento das políticas sobre a regulação dos produtos perigosos especificamente ou sobre estratégias que causam grandes danos ao meio ambiente, como a questão do desmatamento.
A mudança no processo de divulgação dos dados do PARA – Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, e a mudança da metodologia para cálculo do risco do PARA também. A mudança de metodologia não foi só na divulgação dos dados do número de óbitos e infectados por Covid e também a influência sobre os dados IBGE, a gente também teve isso dentro da política, dos dispositivos normativos, sobre os agrotóxicos.
Essa grande liberação dos produtos faz parte desse conjunto de medidas, não é uma coisa isolada. É uma política, uma estratégia desenvolvida, e que apresenta uma ameaça em potencial de danos à saúde e ao meio ambiente. Muitos produtos que foram liberados são proibidos nos países fabricantes, são extremamente tóxicos para polinizadores como as abelhas, existem muitas misturas de agrotóxicos que foram liberadas. E a questão da mistura é um problema à parte porque, quando você analisa os danos relacionados à exposição aos agrotóxicos, você não analisa o conjunto da obra, você não analisa o conjunto de substâncias às quais as pessoas estão expostas. Os métodos analíticos permitem que você analise a exposição a uma única substância, por uma única via de exposição, e a realidade da exposição é que o indivíduo se exponha ao conjunto das substâncias e que é mais que a soma das partes. Por exemplo, se você tem um nível que é considerado “seguro” de exposição a determinado agrotóxico e outro nível que é considerado “seguro” para um outro agrotóxico, quando você se expõe a esses dois conjuntamente você não pode considerar que está ok se o nível de um se estiver dentro do limite e o outro está abaixo do limite, porque essas duas substâncias quando estão juntas dentro do organismo elas podem interagir entre si e uma pode potencializar o efeito tóxico da outra. É o que a gente chama de efeito sinérgico. Um mais um, nesse caso, não seria igual a dois. É muito preocupante e a gente teve muitos produtos que foram liberados que eram misturas, para as quais a gente tem essas limitações analíticas muito importantes.
No conjunto da obra, essas mudanças representam uma grave ameaça à saúde, ocultam situações de risco relacionadas à exposição aos agrotóxicos no Brasil e essa aceleração na liberação se dá a despeito de alternativas menos danosas para o meio ambiente. A gente sabe que existe uma proposta, um plano, uma política nacional de agroecologia que está numa tentativa de caminhar paralelamente ao PL do Veneno, que propõe medidas que são muito mais saudáveis tanto para o ambiente quanto para a saúde das populações, não só do ponto de vista nutricional e dietético, mas também que assegura o soberania e segurança alimentar e nutricional e reduz a carga de exposição a substâncias químicas potencialmente nocivas à saúde.
A gente não tem que falar no seguro de agrotóxicos, porque, no final das contas, elas são substâncias tóxicas, que têm como finalidade precípua a eliminação da vida. Todo agrotóxico é tóxico ainda que se tente mudar o nome. “É defensivo fitossanitário”, olha que nome bonito, mas mudar esse nome significa, em alguma medida, ocultar a mensagem que fica muito clara de que existe uma toxicidade inerente à essa substância. O nome agrotóxico diz muito claramente é tóxico. Você pode ter agrotóxico extremamente tóxico, altamente tóxico, pouco tóxico, muito pouco tóxico, mas você não vai ter nenhum que não seja tóxico. Porque o objetivo do agrotóxico é matar, é eliminar uma espécie, claro que muitos deles não são espécies específicas, então além de eliminar a espécie à qual ele se destina, ele acaba causando danos a outras espécies, inclusive a nós humanos. Então, considerando que não existe agrotóxico não tóxico, que a finalidade precípua dele é eliminação da vida e, por mais que sejam adotadas medidas que sejam consideradas de redução de exposição, como o usos dos EPIs, os equipamentos de proteção individual, que são usados por trabalhadores expostos, a gente não tem como eliminar o perigo. O perigo é inerente a essas substâncias.
“Esse relaxamento dos marcos regulatórios é o que causa maior preocupação, porque eles se materializam neste regramento ou na falta do regramento dessas substâncias que têm o potencial de causar danos muito severos e potencialmente irreversíveis para saúde humana.”
Hoje no Brasil é proibido o registro de agrotóxicos que causam alteração no DNA das pessoas, que é o que a gente chama de mutação genética; danos ao sistema reprodutivos; que causa em câncer; que causem distúrbios reprodutivos; que causem desregulamentação endócrina, que é a desregulação na produção e liberação de hormônios; também é proibido o registro de agrotóxicos que sejam relacionados à malformações fetais. O que a flexibilização está pedindo pede que seja permitido registrar esse tipo de agrotóxicos no Brasil a partir de um processo de avaliação de riscos com “modernização”, palavra bonita para usar né, modernização.
Com a flexibilização a gente parte de uma lógica que existe efeitos aceitáveis. Qual é o risco aceitável diante de um efeito grave e potencialmente reversível? Quantas crianças a gente vai aceitar que nascerão com malformações? Quantos cânceres a gente vai aceitar? É falso dizer que não existe avaliação de risco no Brasil. A proibição desses produtos se dá em função dessa análise. Esse modelo, que é o mais protetivo para a população e para o ambiente, ele está ameaçado justamente em função dessas pressões do mercado para relaxar essas normativas, porque esses estudos são caros, são longos que tem que ser realizados para esperar se aquele efeito crônico vai surgir. Você não se expõe a uma substância carcinogênica que desenvolve o câncer amanhã, é um processo que pode demorar anos para surgir, pode demorar até 35 anos para se manifestar. Então existe uma lacuna de tempo, um intervalo muito grande para que esses efeitos se manifestem e os estudos são caros para serem realizados. Isso encarece o processo para quem está interessado em registrar aquele produto. Só que a gente não pode fazer com que haja uma flexibilização no marco normativo para atender os interesses econômicos. A proteção da vida, do ambiente saudável e equilibrado, protegendo os nossos biomas e os nossos ecossistemas, deve ser a prioridade máxima e absoluta. Os interesses econômicos são secundários e subordinados nesse cenário.
Assista ao debate completo: