Por Le Monde Diplomatique Brasil
A grilagem de terras tem sido um fenômeno recorrente no Brasil desde o período colonial. Desde então, constitui um fator determinante para a manutenção da altíssima concentração fundiária brasileira. A apropriação ilegal de terras públicas e tradicionalmente ocupadas não são fenômenos residuais, são práticas corriqueiras da classe historicamente detentora de terras que são aplicadas com maior ou menor intensidade conforme a própria valorização de mercado da terra, ditada pelas dinâmicas dos ciclos econômicos internacionais das monoculturas, dos minérios, das políticas governamentais, das mudanças legislativas, etc. Contudo, mesmo sendo um fenômeno generalizado no país, seus efeitos serão diferentes, variam de acordo com os contextos.
Nas regiões de Cerrado e Amazônia, por exemplo, não é preciso muito esforço investigativo para concluir que a origem dos grandes latifúndios (acima de 10 mil hectares) não está na concessão de grandes sesmarias no período colonial, mas na apropriação ilegal de terras públicas devolutas e territórios tradicionalmente ocupados por povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. Com o aumento expressivo do desmatamento e das queimadas nos últimos dois anos, a relação entre grilagem e desmatamento tem sido cada vez mais identificada por especialistas como uma chave para a compreensão desses fenômenos, bem como para a proposição de iniciativas que diminuam a proliferação de ambos.
Um olhar sobre a malha fundiária e a base legal dos títulos de propriedade da região conhecida por Matopiba – que são as regiões de Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia -, nos levará a mesma conclusão de que não se faz expansão da fronteira agrícola no país sem operar múltiplos esquemas de grilagem de terras públicas e tradicionais de uso comum. O objetivo da grilagem é justamente incorporá-las ao lucrativo mercado de terras, dando-lhes aparência de legalidade suficiente para que sejam revendidas ou dadas em garantia de empréstimos bancários.
Em estudo recentemente concluído pela Associação de Advogados(as) de Trabalhadores(as) Rurais (AATR), foram identificadas outras consequências do processo de expansão da fronteira agrícola, marcado pela (1) conversão de áreas de posse em propriedade, (2) aumento da concentração fundiária, (3) elevação das áreas destinadas à produção de grãos, (4) valorização dos preços de terras, (5) desmatamento e (6) conflitos fundiários, indicadores que se relacionam diretamente com a grilagem de terras e com a apropriação ilegal de territórios tradicionais.
O estudo aponta mudanças significativas nos regimes de posse e propriedade das terras, indicando maior concentração fundiária decorrente deste processo. Segundo dados do Censos Agropecuários do IBGE, entre 1995 e 2017, o número de estabelecimentos agropecuários diminuiu em 17% no Matopiba, indicando um processo de concentração. Os municípios de Formosa do Rio Preto, na Bahia, e Lagoa da Confusão, no Tocantins, foram aqueles que apresentaram maior aumento da área agrícola utilizada por latifúndios, com incorporação de mais de 370 mil hectares em Formosa (aumento de 72,5%) e 155 mil hectares em Lagoa da Confusão (aumento de 154%).
É importante notar que os municípios com maior conversão de posse em propriedade, concentração fundiária, com maior e mais extensa produção de grãos e valorização do preço da terra são também os municípios mais desmatados no Matopiba, sendo a interlocução destes fatores importantes indicadores da expansão da fronteira agrícola e da grilagem. O desmatamento cumpre um papel central na grilagem de terras, sendo a afirmação inversa também verdadeira. Fundamentalmente, a efetivação da posse de áreas griladas cuja vegetação nativa encontra-se preservada se dá com a abertura de picadas demarcatórias, seguida por um instrumento utilizado para consolidar a fraude documental, tornando-a fato consumado. Além disso, eleva por si só o valor da terra do mercado (já que as áreas desmatadas são absolutamente mais valorizadas que as áreas de cerrado nativo).
Entre 2001 e 2019, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, o Cerrado brasileiro perdeu 283.366,71 Km², sendo que no Matopiba a perda da vegetação nativa foi em mais de 125.000 km2, o que representa aproximadamente 45% do Cerrado desmatado. A partir de 2007, os Estados do Tocantins e Maranhão assumem os postos de destaques até os dias atuais. Em 2019, o estado campeão de desmatamento foi o Tocantins, seguido do Maranhão, Mato Grosso e Bahia. O Piauí foi o 7º Estado mais desmatado do Cerrado.
Analisando e comparando os dados da extensão territorial dos estabelecimentos agropecuários identificados pelo IBGE com os dados autodeclarados no Cadastro Ambiental Rural, é possível identificar discrepâncias significativas a nível municipal, indicando que o cadastro está sendo efetivamente utilizado para declarar imóveis/estabelecimentos agropecuários inexistentes, ou para expansão de áreas dos imóveis existentes. Os municípios com maiores discrepâncias são também aqueles mais desmatados, a exemplo de Santa Filomena, no Piauí, e Balsas, no Maranhão.
A frágil regulação da propriedade da terra no Brasil: o que é público e o que é privado?
Sem dúvida, o regime jurídico da propriedade da terra assume uma posição estruturante da vida social, especialmente no contexto de países colonizados e com dimensões continentais, como é o Brasil. A forma jurídica da propriedade da terra expressa, em nosso contexto, conflitos históricos em um país no qual o domínio e subjugação das terras e das gentes se fez condição primordial para a conquista de novos territórios. Portanto, o pressuposto é que temos um regime jurídico da propriedade de caráter tipicamente pós-colonial.
Um marco fundamental para o entendimento da construção da legislação fundiária brasileira é a Lei de Terras do Brasil (nº 601/1850). Ela incorpora e reafirma a legislação colonial, reconhecendo a validade das sesmarias regularmente concedidas, mas reconhece também a origem pública das terras brasileiras. Isso significa dizer que todas as terras brasileiras são públicas e que a passagem delas para o domínio privado somente deve ser formalmente reconhecida se houver o registro da propriedade em cartório e se esta propriedade estiver calcada na posse legítima ou tenha sido adquirida do poder público por meio da compra. Pela Lei de Terras, ainda em vigor, somente os títulos de propriedade que apresentam em sua cadeia sucessória o devido destaque do patrimônio público deveriam ser considerados particulares.
Esta Lei e seu regulamento (Lei 1318/1954) estabeleceram ainda critérios para legitimação de posse e separação das terras públicas das terras particulares, criando várias hipóteses de transferência de terras do domínio público para o privado. No entanto, mesmo com as previsões e todos os mecanismos criados para garantir que as classes latifundiárias brancas pudessem efetivar a transferência do patrimônio público para o privado, essas disposições raramente foram observadas.
Não se trata de mero acaso, portanto, que a forma ilegal para a realização desta transferência – a grilagem – seja o principal meio de acesso à terra construído pelas elites, revelada a cada vez que aprofundamos as análises dos atuais títulos e registros de propriedades. Este cenário justifica o fato de que é raridade encontrar matrículas de imóveis rurais de grandes dimensões no PDA Matopiba que possuam uma cadeia sucessória válida e que alcance o período do regime sesmarial e da Lei de Terras e, portanto, os grandes proprietários acabaram, ao longo do tempo, encontrando meios de dar aparência de legalidade aos seus registros de propriedade, por meio da grilagem.
Embora sejam rígidos os requisitos para o registro regular de imóveis, há um completo e generalizado descontrole das atividades cartorárias no país. É inviável a realização da grilagem de terras sem o erro ou conveniência do Cartório de Registro de Imóveis. E, neste sentido, considerando que boa parte dos títulos de propriedade que hoje estão situados no PDA Matopiba não alcançam o destaque do patrimônio público, sendo portanto, ilegais, mas, ao mesmo tempo, estão registrados nos Cartórios, pode-se afirmar, com absoluta certeza, que a grilagem nesta região é necessariamente mediada pela atuação dos cartórios, que acabam ignorando as regras de registro.
A Constituição Federal e as Constituições Estaduais na região Matopiba são taxativas no que se refere à destinação preferencial das terras devolutas, que deve ser para a reforma agrária, regularização fundiária de ocupações tradicionais e proteção de ecossistemas. Esta disposição consta nas constituições estaduais dos quatro estados da região. Elaboradas no mesmo contexto da Constituição Federal de 1988, no ano de 1989, as Constituições apontam para uma promoção efetiva da justiça social, por meio de políticas públicas que incluem o acesso à terra. Este programa valoriza o trabalho e o cultivo familiar e/ou coletivo da terra, os territórios negros, indígenas, quilombolas e tradicionais, os assentamentos. Por outro lado, impõe limitações taxativas para a apropriação injusta e concentrada por empresas e particulares, limitando os critérios para venda ou legitimação de posse, bloqueando a formação (ou legitimação) de latifúndios e minifúndios por meio da destinação de terras públicas.
Nas constituições da Bahia, Tocantins e Maranhão, a venda de terras públicas devolutas a particulares, sejam pessoas físicas ou jurídicas, somente pode acontecer em última instância, após observadas as preferências determinadas pelas próprias constituições. No caso da Constituição do Piauí, há uma vedação expressa à venda de terras públicas devolutas, embora estejam em vigor leis estaduais que regulam a venda de terras públicas. Essas limitações constitucionais têm movimentado governos e legisladores a criar mecanismos que visam facilitar a transferência de domínio das terras públicas para o particular, especialmente para atender a demanda por terras resultante da expansão da fronteira agrícola no Cerrado – e com significativo apoio financeiro do Banco Mundial. Há claras mudanças institucionais e brechas legais sendo gestadas e implementadas com o objetivo de “Legalizar o Ilegal”.
Destacamos dois tipos principais de brechas legais. O primeiro, é a fixação de um marco temporal para considerar válidas cadeias sucessórias que não tiveram o destaque do patrimônio público (legalização da grilagem registrada em cartório até uma determinada data); o segundo é a expedição, pelo Poder Executivo estadual, de títulos de reconhecimento de domínio de imóveis rurais cujos registros em cartório não preenchem os requisitos legais, ou seja, são possivelmente devolutas.
O Código Florestal e suas consequências ambientais e fundiárias
O Novo Código Florestal (Lei Federal 12.651/2012) é uma legislação que aprofunda a relação entre o desmatamento e a grilagem no Matopiba. Há estudos que indicam, por exemplo, que com a sua aprovação, cerca de 58% do desmatamento ilegal foi legalizado.
Dois importantes instrumentos do Código Florestal têm favorecido o desmatamento e têm feito acender o alerta para a sua vinculação com a grilagem de terras: o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a possibilidade de compensação de reserva legal fora do próprio imóvel rural. O CAR é um instrumento criado com o objetivo de agregar os registros ambientais de todos os imóveis rurais brasileiros e tem sido largamente utilizado com objetivo de comprovação de suposta posse ou propriedade, seja em ações judiciais ou nas esferas administrativas onde conflitos agrários estão em pauta, assumindo, na prática, uma interface importante com a questão fundiária.
A natureza autodeclaratória do CAR associada à ausência de uma política criteriosa e efetiva de análise e validação dos registros inscritos no sistema favorece as inconsistências no cadastro e tem possibilitado, por exemplo, a concessão de autorização de desmatamento em terras griladas. O instrumento de compensação de reserva ambiental permitiu que novas áreas (antes não permitidas) sejam declaradas como Reserva Legal (RL), desde que no mesmo bioma, abre também a possibilidade de que as áreas anteriormente tidas como reserva possam ser desmatadas.
Não há indicação de análise de documentos dominiais (títulos de propriedade, certidões de cadeia sucessória) pelos órgãos ambientais e nem interação com órgãos fundiários para isso, ou mesmo para a identificação de conflitos fundiários, para verificar se a área está sendo requerida por povos e comunidades tradicionais ou se está tendo seus registros imobiliários questionados. Uma melhor interlocução entre órgãos ambientais e fundiários resultaria não somente em maiores dificuldades para a utilização do Cadastro Ambiental Rural como modalidade de grilagem, como poderia tornar mais eficaz, transparente e participativa a execução de ambas as políticas públicas.
Como causa e consequência da aceleração das mudanças climáticas atualmente em curso no planeta, a corrida pelas terras agricultáveis – e com disponibilidade de água – tem acentuado as desigualdades entre países do centro e periferias do sistema capitalista, assim como dentro dos próprios países periféricos, onde as elites políticas e econômicas locais se re-articulam para atender à demanda por commodities. Embora seja mais evidente para as populações locais diretamente impactadas, cada vez mais estudos têm apontado que a territorialização do agronegócio na região Matopiba não têm se revertido em melhoria da qualidade de vida da população; pelo contrário, a degradação do ambiente e a perda de acesso à terra têm sido fatores de aumento da pobreza absoluta na região.
A concentração de terras, estruturando a desigualdade social e racial desde o período colonial, tem se intensificado na região como consequência direta da expansão da fronteira agrícola. A conversão massiva de áreas cadastradas como posse em cadastros de propriedade, indicada pelos dados oficiais na escala de milhões de hectares nas duas últimas décadas, apontam que os mecanismos de falsificação de títulos de propriedade estão sendo utilizados larga escala, tendo em vista que a expansão da fronteira tem ocorrido sobre terras devolutas, de pequenos posseiros, territórios indígenas e de povos tradicionais.
São terras, conforme demonstrado, que por razões históricas, econômicas e políticas jamais foram incorporadas ao patrimônio privado e que deveriam, a rigor, ser objeto de legitimação de posse para as comunidades e posseiros, e para as remanescentes caberia observar a destinação constitucional, nas diversas esferas, com prioridade para o assentamento de trabalhadores/as rurais e criação de áreas de proteção ecológica.
Diante da inexistência – histórica e atual – de uma política ativa dos órgãos fundiários estaduais para identificação, delimitação, arrecadação e destinação das terras devolutas, que compõem parte significativa das terras em disputa na região Matopiba, não há outra razão plausível que justifique o aumento tão expressivo do número e dimensão ocupada por propriedades privadas que não o uso da grilagem. Os dados, legislações, casos concretos e os elementos históricos articulados apontam com pouca margem de dúvida que esta conversão vem se dando com a continuidade, incremento e aprimoramento dos velhos métodos de falsificação, cujos protagonistas são, periodicamente, beneficiados com legislações mais flexíveis para regularização futura dos títulos.
Note-se que apesar da Constituição Federal de 1988 e as constituições estaduais apontarem em outra direção, as brechas para regularização da grilagem foram propostas em cada estado da região Matopiba, com exceção do Tocantins, conforme o período que se iniciou com mais força a expansão da fronteira agrícola em cada um deles. Na Bahia, estado onde a expansão da fronteira é mais antiga, esses dispositivos legais existem desde 1972/75; no Maranhão, desde 1991; no Piauí, cuja expansão da fronteira é mais recente, em 2015 e 2019.
No mesmo sentido, tem surgido uma profusão de falsas soluções apontadas pelos próprios agentes que deram e dão causa ao desastre socioambiental do Cerrado brasileiro nos últimos 50 anos, a exemplo dos bancos e conglomerados econômicos do agronegócio. Tais propostas passam pelo aprofundamento da financeirização da terra e dos bens da natureza, a exemplo do mercado de carbono e das cotas de reserva ambiental, que tem fomentado novas formas e motivações para grilagem de terras, especialmente aquelas que permanecem com vegetação nativa preservada e ocupadas por povos e comunidades tradicionais.
Com efeito, responder de modo adequado aos desafios relacionados à questão ambiental e fundiária no Brasil passa necessariamente por ouvir e levar em consideração as formulações e práticas já desenvolvidas pelos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, fundos e fechos de pasto, pequenos agricultores, movimentos sociais de luta pela terra, que efetivamente têm produzido alimentos em seus territórios há séculos, sem apoio governamental e sem promover a degradação total dos seus recursos. A valorização destes modos de fazer, viver e criar, garantindo a segurança dos territórios contra a grilagem de terras e melhorando as condições de permanência no campo daqueles que cuidam da terra, das águas e da biodiversidade, sem dúvida terá efeitos mais duradouros no combate às mudanças climáticas do que mecanismos e instrumentos legais que subordinam a proteção da natureza à dinâmica dos mercados financeiros.
Joice Bonfim é advogada popular, coordenadora da AATR e mestra em desenvolvimento, agricultura e sociedade pelo CPDA/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Maurício Correia é advogado popular, Coordenador da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) – Bahia, e especialista em Direitos Sociais do Campo pela UFG.