Por Pedro Neves Dias
Do Brasil de Fato
O governo federal decidiu suspender a cobrança de impostos de importação do grão da soja, bem como do farelo e do óleo, até 15 de janeiro de 2021. A decisão também se aplica à importação do milho, cuja alíquota será zerada até 31 de março do próximo ano.
Para debater o tema, na última segunda-feira (19), foram convidados o Frei Sérgio Görgen, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), e o professor e ex-presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Silvio Porto. A live faz parte da série promovida pelo MPA, em parceria com o Brasil de Fato RS e a Rede Soberania, sobre o problema da falta de alimentos agravados pela pandemia e a soberania alimentar.
Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), somos o maior produtor mundial de soja, em dados da safra 2019-2020.
Dados sobre a produção de soja no mundo e no Brasil / Embrapa
Nesses dados, é interessante notar que Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul, respectivamente, correspondem aos três estados que mais produzem o grão, sendo responsáveis por mais da metade da produção geral de grãos do país.
Participação dos estados do Brasil na produção nacional de grãos / Embrapa
Já no início do ano, meses antes do começo da pandemia, o IBGE previa um recorde para a safra 2020-2021, com um aumento de quase 1% em relação ao período anterior, onde já éramos líderes mundiais. Essas expectativas foram atingidas e, inclusive, superadas, na medida em que se percebe um aumento de produção de quase 2%.
Todo esse sucesso econômico contrasta, em primeiro lugar, com a alta no preço das rações animais e do óleo de soja, por exemplo. Segundo, chama também muita atenção a notícia de que o governo federal está estimulando a importação deste produto, zerando taxas referentes.
Segundo a análise feita pelo Frei Sérgio Görgen e Silvio Porto, tais medidas fazem parte de uma política mais ampla, com reflexos no aumento dos índices de fome e nutrição do país.
Política da fome
Segundo Frei Sérgio, frade franciscano e militante do MPA, a política agrícola do governo Bolsonaro não faz sentido sequer do ponto de vista do agronegócio, na medida em que tanto se vangloria de sucessivos recordes de safras, ao mesmo em que se passa a importar soja de outros países.
“O estímulo à importação se dá através das medidas de retirada das tarifas impostas aos produtos comprados do exterior. É pratica comum, em praticamente todo o mundo, proteger seus produtos, facilitando sua produção e comercialização, ao mesmo tempo em que levantam proteções relativas aos seus concorrentes comerciais. Dessa forma, as tarifas de importação visam garantir pelo menos o mercado interno, dando aos produtores, inclusive, melhores condições de competir no exterior”, explicou.
Segundo o governo, a justificativa para a retirada de tarifas visa combater o aumento dos preços no mercado interno. De fato, a alta dos preços da soja no mercado interno contribui para aumentar os preços nas prateleiras, mas também gera dificuldades aos produtores locais de proteína animal, principalmente de frangos e suínos, que se alimentam com rações à base de soja.
Nesse sentido, Frei Sérgio questiona como pode um país não conseguir minimamente garantir a quantidade necessária de um insumo que ele mesmo é o maior produtor mundial? “Se o Brasil é o maior produtor de soja do mundo, como é possível que não possamos ter um mínimo controle sob seus preços?”
Para Silvio Porto, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e ex-presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a decisão de importar o grão é uma questão política. “Nós viemos nas últimas semanas debatendo os problemas relacionados à alta nos preços dos alimentos, principalmente do arroz e do feijão. Sobre o que está acontecendo com o milho e a soja, eu diria que são problemas da mesma natureza.”
Porto alerta que faz parte de um posicionamento deliberado do governo. Segundo ele, atualmente, está nas mãos do mercado de commodities a regulação de uma política de alimentação, ou seja, são os próprios empresários do agronegócio (seja da produção ou do comércio) que decidem o que vai ser plantado, colhido e distribuído. Neste caso, não importa se o país produz alimentos como nenhum outro ao mesmo tempo que os preços não param de subir para os consumidores, não são estas necessidades que prevalecem.
Sobre todo o sistema da soja, o professor comenta: “Eu prefiro chamar a soja de commoditie, pois da forma como ela é produzida no Brasil, eu me nego a chamá-la de alimento”.
Para ele, a situação atual não é natural. “A atual política governamental privilegia o crescimento das commodities, em detrimento dos alimentos.” O professor lembra que a aprovação da Lei Kandir, que retirou impostos dos produtos destinados à exportação, favoreceu o crescimento deste mercado, abrindo espaço para a agricultura nacional voltar suas forças produtivas para o comércio exterior, ao invés do suprimento de alimentos para o mercado interno. A maior parte das áreas cultivadas é direcionada para isso e está em propriedade de uma pequena quantidade de latifundiários.
Porto amplia ainda o debate, mostrando uma face mais perversa dessa política, que conecta a economia brasileira ao sistema mundial. Acima destes grandes produtores, fica privilegiado o setor das tradings, empresas multinacionais que dominam o grande comércio de produtos agropecuários primários no mundo.
Atualmente, cerca de 40% de toda soja produzida no mundo já está comprada antecipadamente, ou seja, quase a metade de toda a produção de soja não é necessariamente uma pressão real de demanda. Ao financiar parte da produção, na verdade essas empresas multinacionais acabam exercendo um enorme poder inclusive sobre esses produtores. Segundo Porto, apenas os maiores produtores conseguem ter um poder relativamente maior dentro desse sistema, ao passo que produtores menores do agronegócio estão em uma posição subordinada.
“O poder dessas empresas de comércio internacional, aliado a não existência de uma política de produção de alimentos acessíveis e saudáveis para a população, gera um ambiente onde o país precisa comprar de fora aquilo que mais produz, por exemplo. A falta de controle sobre esse mercado de alimentos acaba deixando totalmente vulnerável uma política de segurança alimentar. A alta dos preços nos mercados e a piora da nutrição da população são os principais reflexos disso”, avalia.
Ainda segundo Frei Sérgio, uma nação só é soberana quando ela tem condições de alimentar todo o seu povo e ainda manter estoques para vários anos. “É realmente contraditório que o Brasil tenha mais de 12 milhões de pessoas famintas, vista tamanha capacidade produtiva que não é empregada para alimentar diretamente o povo brasileiro.”
Para o Frei, seriam alternativas uma política de abastecimento popular baseada na produção de modo camponês e familiar, com cultivos sustentáveis, associados com a agroindústria. Além disso, em período de pandemia, as compras públicas de alimentos poderiam, a um só tempo, estimular a produção nacional, bem como garantir os alimentos necessários para aqueles que mais precisam.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko