Por Caio de Freitas Paes
De Olho nos ruralistas
Não faltaram alertas: a pandemia pode acelerar a volta do Brasil ao Mapa da Fome e o melhor — senão o único — antídoto é a agricultura familiar, ou camponesa. No início de abril, em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, José Graziano, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), defendeu uma política arrojada, de fortalecimento da agricultura de subsistência como contraponto à crise.
Mas o governo de Jair Bolsonaro não deu ouvidos. O presidente barrou o auxílio de R$ 600 à classe e nenhum centavo dos R$ 500 milhões prometidos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi liberado. As que mais sofrem com este abandono são as mulheres rurais, que representam oito em cada dez beneficiários do PAA, somando todas as categorias. Entre assentados e quilombolas, a proporção cresce ainda mais.
De Olho nos Ruralistas teve acesso ao relatório da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) com os resultados do programa em 2019. Mesmo que impressionante, a proporção é um recuo na comparação com 2018, quando as mulheres respondiam por 84% da agricultura familiar contemplada via PAA durante o último ano de Michel Temer (MDB) na presidência. Além disso, os recursos do PAA estão em queda livre desde 2013.
“Sem uma política integrada de compra, distribuição e gestão dos estoques públicos, os alimentos orgânicos não chegam à população — e o dinheiro não chega ao campo“, afirma Silvio Porto, ex-diretor da Conab. “A premência da fome vinha antes mesmo da pandemia e, com ela, o problema só se potencializou”.
VENDAS DESPENCARAM DURANTE A CRISE
Não são apenas as famílias camponesas que passam por apuros sem o apoio governamental. Programas como o PAA garantem a distribuição de toneladas de alimentos agroecológicos, aliados na proteção ambiental do país. São cooperativas lideradas por mulheres que, em muitos casos, conservam as matas com suas roças.
É o caso do Assentamento Margarida Alves, em Mirassol D’Oeste (MT), localizado em uma importante zona de transição entre Amazônia, Cerrado e Pantanal. Segundo a plataforma MapBiomas, entre 1985 e 2018 o município perdeu 59,7% de sua vegetação nativa, em grande parte pela expansão da agropecuária. As derrubadas incluem áreas de savanas florestadas, conhecidas como cerradão, onde nascem as palmeiras de babaçu.
Antes comum em áreas alagadas, a espécie tornou-se raridade no sudoeste do Mato Grosso. É dela que vem o sustento de dezenas de famílias sem terra em Mirassol D’Oeste. Inteiramente aproveitável, seu fruto gera riqueza e sacia a fome, transformado em biscoitos, farinha enriquecida, mingau e pães.
“A gente vendia pães e bolachas pelo PAA no ano passado, mas não temos mais esse recurso”, conta Rita Zocal, uma das integrantes do grupo. “As vendas caíram muito porque o pessoal só tem comprado o necessário, e nossos produtos ficaram de fora”.
Antes da pandemia, o grupo comercializava, em média, 80 quilos de farinha de babaçu por semana. Boa parte é adquirida por farmácias de manipulação em Cuiabá, a pouco mais de 300 quilômetros dali. Elas também vendem para pastorais, onde é usada na multimistura. Isso sem contar outros usos, com partes da palmeira transformadas em cosméticos, lubrificantes e sabão. Desde março, porém, os negócios empacaram, e elas passaram semanas sem nenhuma venda.
No mesmo município, as mulheres do assentamento Roseli Nunes também passam aperto sem o apoio público. Ali atua o grupo Abelhas Rainhas, que produz mel de forma agroecológica há anos. Hoje, as assentadas veem seu trabalho comprometido, sem escoamento. Como agravante, foram descobertas recentemente na região reservas de ferro e fosfato, atraindo o interesse de mineradoras.
Segundo Juliana Malerba, pesquisadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), uma eventual exploração da jazida, estimada em mais de 11 bilhões de toneladas, ameaça “um modelo alternativo de práticas agrícolas, sem o uso de insumos químicos e agrotóxicos”.
GESTÃO PÚBLICA FAVORECE O AGRONEGÓCIO
A pandemia fechou a torneira das compras direcionadas para a merenda escolar. Com a interrupção de contratos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as Margaridas assistiram às vendas empacarem.
De acordo com a Lei nº 11.947/2009, pelo menos 30% da merenda em escolas públicas devem vir da agricultura familiar. O governo federal autorizou a entrega direta dos produtos às famílias, mas isso não bastou para evitar as perdas. “Os programas de compras públicas são a base para comunidades como Margarida Alves e Roseli Nunes”, diz Leonel Wohlfhart, representante da Fase na região.
Iniciativas como o PNAE e o PAA fortalecem outros grupos de camponeses no Mato Grosso, como a Associação Regional dos Produtores Agroecológicos (Arpa) e o Centro de Tecnologia Alternativa (CTA). Somando outras parcerias, em 2019 estas duas organizações forneceram mais de 200 toneladas de alimentos em Cáceres, Jauru e Pontes e Lacerda, entre outros municípios mato-grossenses, mas para 2020 esperam uma queda vertiginosa.
Isso porque os programas federais não são os únicos que estão emperrados. No início de maio, o governo de Mauro Mendes (DEM) anunciou R$ 2 milhões para o PAA estadual, mas organizações contestam sua execução. A controvérsia levou o Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável a pedir explicações sobre o critério de seleção dos municípios. Mesmo com participação assídua e bons resultados nos programas de compra e doação, Mirassol D’Oeste ficou de fora do repasse de recursos.
“O estado não chega nem aos 30% exigidos pelo PNAE, então há um histórico que favorece outro modelo, o do agronegócio em larga escala”, diz Wohlfhart. Movimentos de base no Mato Grosso negociam a inclusão de municípios com baixo IDH no edital, fortalecendo assim pequenos produtores locais.
CONGRESSO DISCUTE APOIO EMERGENCIAL PARA CAMPONESES
“Pagaremos caro pela desestruturação da agricultura familiar, porque será difícil, demorado e incerto retornarmos a um cenário minimamente aceitável”, diz Silvio Porto. Os dados do governo federal sustentam a preocupação do ex-diretor: segundo a Conab, em 2019, mais de 83% dos beneficiários do PAA em assentamentos da reforma agrária eram mulheres.
A disparidade é ainda maior em outras categorias. Mulheres representaram 90% dos beneficiados em quilombos por meio do PAA em 2019. Há ainda milhares de agricultoras que sequer acessam os programas. De Olho nos Ruralistas mostrou o caso de Barra da Aroeira, quilombo no Tocantins excluído do PAA e do PNAE pela demora na titulação de suas terras.
A necessidade de fortalecer a agricultura camponesa durante a pandemia levou à criação do Projeto de Lei nº 735/2020, a Lei Emergencial da Agricultura Familiar, que estava na pauta de votação da Câmara nesta quinta-feira (25) mas ficou para a semana que vem.
Organizações como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) pedem a destinação de recursos específicos aos pequenos produtores. “Há perdas que foram se acumulando ao longo desses meses e uma incerteza de como se comportará o mercado de alimentos nos próximos três, seis meses ou um ano”, afirma o secretário executivo da ANA, Denis Monteiro. “O Estado precisa sinalizar para a agricultura familiar que haverá apoio efetivo, com programas de compras públicas, como o PAA Emergencial”.
Redes e movimentos camponeses sugerem o fomento de até R$ 5 mil aos agricultores e, no caso das mulheres, de até R$ 10 mil. Pedem também verbas específicas às cooperativas e associações – os créditos seriam de até R$ 200 mil. Caberá ao relator do projeto, o deputado Zé Silva (Solidariedade/MG), incluir – ou ignorar – as sugestões em seu parecer final.
| Caio de Freitas Paes é repórter. Escreve para De Olho nos Ruralistas e The Intercept Brasil, entre outros veículos |
Foto principal (Divulgação/Record TV): Câmera Record mostrou escassez de mantimentos no sertão nordestino