Quilombo no Mato Grosso sofre com ataques de fazendeiros e epidemia de hanseníase
por Nadine Nascimento, com foto de Dagmar Talga
“Somos usuários, não somos donos da terra. O dono é o Instituto Cultural Zumbi dos Palmares porque tem uma certificação federal. Essa terra vai ficar para os meus filhos, netos e bisnetos, e se eles não quiserem a terra vai ficar para a comunidade”, garante João Bispo, quilombola bisneto de escravos.
Presidente da comunidade São Gonçalo II e delegado da CONAQ (Coordenação Nacional de Quilombos) Mato Grosso, seu João, de 63 anos, fala com orgulho da certificação do Instituto Cultural Zumbi dos Palmares dada em 2015 ao seu quilombo. O certificado visa reconhecer origens, alargar direitos e ampliar o acesso a políticas públicas, permitindo que essas comunidades possam receber titulação de território.
Em uma área de 443 hectares vivem 19 famílias entre os municípios de Poconé e Livramento, a 120 km de Cuiabá, no Mato Grosso. “Temos água à vontade, temos terra da melhor qualidade, mas não temos estrutura, alguém para nos orientar. Se tivesse pelo menos um financiamento para a gente começar”, lamenta o quilombola.
Em São Gonçalo II grande parte da produção é de subsistência: “Nem todas as famílias têm condições de produzir para o comércio. No ano passado um membro da minha comunidade perdeu 20 caminhões de abobrinhas porque não tinha para quem vender”. A falta de recursos e a impossibilidade de escoamento da produção são os principais obstáculos para que os quilombolas sejam autossuficientes.
De fala mansa e respeitosa, seu João sempre se refere a alguém como “o senhor” ou “a senhora” e se emociona com facilidade ao lembrar da história do seu povo. “Até 2012 muitos membros da minha comunidade foram escravos de fazendeiros”, conta. Em sua opinião, a falta de oportunidades é determinante para seu povo. “Mais de 90% da população da nossa comunidade é analfabeta. Para chegar até a escola, as crianças precisam andar até 80 km por dia. Eu mesmo leio um pouquinho, mas sou ruim para escrever”.
A saúde também é um tema delicado. Dentro do quilombo há uma epidemia de hanseníase e o tratamento é quase impossível por conta da enorme distância entre o quilombo e o centro de saúde mais próximo. “Estamos entre dois municípios, então, é complicado. Vamos em uma prefeitura e nos mandam ir em outra. Não nos matam só com tiros. Vão nos matando aos poucos com o descaso”, diz o quilombola.
Jurados de morte
Até a certificação do território, São Gonçalo II passou por uma série de ameaças e investidas por parte de fazendeiros locais, sendo vítima até de falsificação sobre a real origem das terras. “Um fazendeiro falou para um dos nossos mais velhos que ia fazer a escritura para a gente, até por falta de conhecimento e por não ter ainda a certificação da Fundação Cultural dos Palmares, concordamos. Depois disso vieram várias reintegrações de posse por parte dele”, lembra.
O quilombola teme ainda hoje por sua vida e do filho de 15 anos.“Sou jurado de morte desde 2011. Ele é um fazendeiro muito poderoso, é médico, têm delegado, deputado na família… o maior mal para nossa comunidade!”. Ele até recebeu orientações da polícia para ficar um tempo afastado de seu quilombo e evitar o “corredor da morte”. “Temos um corredor de 25 km que sai da BR 70 para chegar até nossa comunidade. Dos dois lados são terras dele. Ele pode mandar alguém me matar e me colocar dentro da sua propriedade dizendo que eu invadi.”
Essa não é a primeira vez que a comunidade sofre ameaças ou ataques. Em 1954, o quilombo perdeu 60 pessoas em uma chacina, ao lembrar seu João se emociona bastante e chora: “Não vou falar da chacina”.
Seu João participa do curso Agrotóxicos e Saúde: Subsídios Para a Vigilância Popular, da região Centro-Oeste, que acontece em Várzea Grande, no Mato Grosso, entre os dias 2 a 11 de julho. O curso é fruto de uma parceria entre a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e a Fiocruz.
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