Região do Matopiba é, hoje, maior fronteira do desmatamento no país. A tragédia: rios poluídos, seca e comunidades extrativistas que perderam a subsistência. Altamente mecanizado, cultivo em latifúndios quase não gera empregos
“A soja tem muita sede, né? Bebe mais água que nós.”
“Tá vendo ali? Tinha tudo que é tipo de fruta, de comida. Agora é esse desertão verde.”
“Agora a chuvarada está chegando mais tarde a cada ano que passa…”
Essas foram algumas das frases ditas por agricultores familiares de municípios da região do Matopiba. — áreas de Cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, consideradas a principal fronteira do desmatamento no Brasil — a um grupo de cientistas brasileiros.
Os cientistas visitaram 62 comunidades em 18 municípios entre os anos de 2016 e 2018. O objetivo dos pesquisadores era verificar, com base em depoimentos de moradores locais, se a expansão do cultivo de soja trazia algum tipo de melhoria na qualidade de vida dessas populações.
Concluíram que é exatamente o contrário. Ligados a instituições europeias — Universidade Católica de Louvain, na Bélgica; Universidade Técnica Chalmers, na Suécia; e Universidade de Amsterdã, na Holanda —, os três cientistas gravaram todos os depoimentos, com a condição de preservar a identidade dos entrevistados, e transformaram as expedições em um artigo científico, publicado na edição desta quinta (10/12) do periódico World Development.
Os pesquisadores verificaram cursos d’água secos ou com trajetória alterada, populações que antes tinham como sobreviver do extrativismo e agora precisam comprar o mínimo para a subsistência, além de rios poluídos por agrotóxicos.
Eles ouviram relatos, por exemplo, de moradores ameaçados por jagunços, e pequenos produtores locais contando que não encontram mais insumos necessários para sua produção — no caso, frutos típicos do cerrado que eram utilizados para a fabricação de polpas para suco e sorvete.
Poluição e seca
“Agora não podemos mais beber a água do ribeirão, temos de ir para a cidade comprar galões. Nem na água do poço a gente confia mais. Usamos só para tomar banho, não para beber”, diz um dos entrevistados aos pesquisadores. A poluição causada por agrotóxicos foi um fator comum identificado pelo estudo em todas as localidades visitadas.
“Teve criança indígena que já morreu por contaminação de agroquímicos. Quando aviões sobrevoam as plantações com agroquímicos, eles relatam que começam a tossir, têm dor de cabeça, muitos vão ao hospital”, diz à DW Brasil um dos autores do trabalho, o pesquisador Tiago Reis, da Universidade Católica de Louvain. “Falta peixe. Depois das chuvas, que levam os agroquímicos para o rio, aparece muito peixe morto.”
Outro relato recorrente diz respeito à diminuição das chuvas e aos rios que secaram. No município de Barreiras, no oeste da Bahia, eles ouviram reclamações de moradores de diversas regiões sobre secas extremas que têm prejudicado o abastecimento. “E, mesmo assim, os pivôs de irrigação da soja permanecem todos ligados”, conta Reis.
“A transformação social que a soja tem gerado no Matopiba não é inclusiva, é altamente excludente, e não caracteriza desenvolvimento”, afirma à DW Brasil outro autor da pesquisa, o cientista Mairon Bastos Lima, da Universidade Técnica Chalmers. “Não é desenvolvimento, é apropriação de recursos naturais de comunidades da região para um setor altamente concentrado do agronegócio.”
“O estudo mostra, com depoimentos em detalhes por vezes bastante crus, como as pessoas da região têm perdido o acesso à terra, à água, sofrido violências e sido sumariamente desapropriadas do espaço rural brasileiro, indo inchar as periferias das cidades, para benefício do monocultivo de soja”, complementa o pesquisador.
Alternativas à soja
Os pesquisadores defendem que seja pensado um plano de desenvolvimento da região do Matopiba com base nas características próprias do Cerrado, valorizando pequenos produtores locais e produtos típicos da região, de maneira sustentável. “Que haja uma estratégia de desenvolvimento que não seja desenvolvimento ou Cerrado, mas desenvolvimento com Cerrado, no Cerrado”, diz Lima.
“Precisamos questionar esta ideia de que transformar um rico e diverso ecossistema em monoculturas de exportação traz desenvolvimento”, pontua à DW Brasil a pesquisadora Gabriela Russo Lopes, da Universidade de Amsterdã. “O cultivo da soja é um sistema altamente mecanizado, dominado por grandes fazendas que geram muito poucos empregos.”
É uma preocupação alinhada com ativistas da região. Isabel Benedetti Figueiredo, coordenadora do programa Cerrado e Caatinga na organização não governamental Instituto Sociedade, População e Natureza, lamenta que o bioma seja “o primo pobre” da conservação ambiental no Brasil. “Isso me intriga: florestas causam mais comoção e mais vontade de proteger do que outros tipos de vegetação”, acredita ela.
Ela afirma que o estudo aponta para fato de que existem alternativas para o desenvolvimento desta região, que não a monocultura de soja. “Há um potencial enorme de geração de renda a partir dos produtos da biodiversidade e da produção agroecológica”, defende. “São comunidades que produzem muitos alimentos que vão para feiras locais, como mandioca, abóbora, alimentos que compõem o prato do brasileiro. E também há uma imensidade de produtos da biodiversidade esperando por incentivos mais robustos e assessoria técnica, como o pequi, o óleo do babaçu, o buriti, o baru.”
A importância do Cerrado
O Cerrado tem importância significativa para o planeta. Primeiramente porque se trata da savana com maior biodiversidade no mundo — abriga 5% de todas as espécies do planeta, entre animais e plantas, muitas delas autóctones. Tal natureza faz com que o bioma seja capaz de estocar 13,7 bilhões de dióxido de carbono, contribuindo para mitigar os efeitos do aquecimento global.
Além disso, preservar o Cerrado significa proteger boa parte do abastecimento de água no Brasil, já que é nessa região que estão as nascentes de quase todos os grandes rios brasileiros. Por isso, muitos pesquisadores chamam o bioma de “caixa d’água do país”.
“A região do Matopiba deveria ser mais bem protegida. É preciso pensar em autêntico desenvolvimento com inclusão social para a região. Inclusão econômica que valorize as culturas locais, a biodiversidade do Cerrado, um desenvolvimento que seja inclusivo e sustentável”, pede Lima. “Não se conserva o Cerrado somente com pedacinhos fragmentados dele aqui e ali, nesta ou naquela fazenda de soja. A conservação em áreas particulares é necessária, mas não é suficiente.”
O pesquisador Reis defende que “qualquer desmatamento é contrário ao interesse coletivo global”. Ele lembra que há uma “quantidade imensa de terras degradadas, mal utilizadas, além de uma capacidade tecnológica e criativa incrível para recuperar solos e implementar sistemas agroecológicos e agroflorestais” que seriam capazes de suprir muito mais do que “a nossa necessidade alimentar, sem a necessidade de converter nenhum pedaço de ecossistema natural”.
Por fim, ele conclui que se o estudo demonstra que a expansão do cultivo de soja não tem trazido desenvolvimento humano para a região, significa que desmatamento algum seria capaz disso. “A soja é a commodity mais rentável. Se ela não traz desenvolvimento, nenhum outro desmatamento vai trazer”, afirma.