O alto índice de casos de trabalho análogo à escravidão em Minas Gerais mobiliza diálogo entre instituições e movimentos sociais na UNIFAL-MG

Por Tatiana Plens I Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas.

Créditos da imagem: Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas.

O alto índice de trabalhadores e trabalhadoras resgatados de condições análogas à escravidão em Minas Gerais, especialmente nas lavouras de café, mobilizou o diálogo entre instituições e movimentos sociais na mesa redonda realizada no mês de maio, durante a 10ª edição da Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). A atividade foi realizada em modo híbrido (presencial e online) e integrou a programação do “Polo em Prosa”, série de encontros virtuais promovidos mensalmente pelo Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas.

Participaram da mesa-prosa a procuradora do trabalho Dra. Letícia Moura; o auditor fiscal do trabalho Leandro Marinho; a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos do Território de Desenvolvimento do Sul (CRDH Sul de Minas), Larissa Goulart; os representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Tiãozinho; e da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (ADERE-MG), Jorge Ferreira dos Santos; e o professor da UNIFAL-MG e integrante do Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas, Adriano Pereira Santos.

Segundo Adriano Pereira Santos, o objetivo da atividade foi apresentar e debater sobre o que caracteriza a escravidão contemporânea, os direitos humanos e sociais e as condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras resgatados nas lavouras do café, e também estimular o engajamento com a questão. “Sobretudo analisar de que modo podemos transformar essa realidade, envolvendo movimentos sociais, instituições sociopolíticas de defesa e proteção do trabalho e a universidade pública, articulados em uma rede de esperança e combate ao trabalho escravo contemporâneo”, salientou o professor.

A definição e o número de casos no Brasil e em Minas Gerais

De acordo com a legislação brasileira, com base no artigo 149 e 149-A do Código Penal e na Instrução Normativa 02/2021 do Ministério do Trabalho e Emprego, é considerado em condição análoga à escravidão o trabalhador ou a trabalhadora submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a: trabalho forçado; jornada exaustiva; condição degradante de trabalho; restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto; e retenção no local de trabalho em razão de: cerceamento de uso de qualquer meio de transporte; manutenção de vigilância ostensiva; ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais.

Os dados apresentados durante a mesa-prosa pelo auditor fiscal do trabalho Leandro Marinho apontam que, de 2013 a 2022, 15.754 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no Brasil, sendo 6.071 no Estado de Minas Gerais, o equivalente a 38%. No Sul de Minas Gerais, foram encontradas nessas condições, desde 2013, 496 pessoas, em 27 municípios. Esses dados, porém, não expressam o número total de trabalhadores e trabalhadoras em condições análogas à escravidão, mas as atividades realizadas ao longo desses anos pelas instituições envolvidas em ações de denúncia, fiscalização, investigação ou negociação, como a ADERE-MG, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) a partir da estrutura estatal existente e da quantidade de auditores fiscais e procuradores do trabalho atuantes em cada região. Marinho observa que há uma demanda por mais profissionais na auditoria fiscal para o enfrentamento da questão. “Deveria ter mais presença, os números demandam mais presença”, reforçou ele.

A história de enfrentamento à situação no território

Na continuidade da mesa-prosa, o integrante do MST Tiãozinho comentou sobre a relação entre o esvaziamento de pessoas na região pela criação de barragens para a geração de energia elétrica e o início do trabalho escravizado na cafeicultura na década de 1980. “Muita gente tinha ido embora. Daí o café melhorou de preço, as plantações expandiram, não tinha ninguém na região e começaram a buscar pessoas de fora, do Norte, Nordeste, do Paraná, que tinham experiência com café”. Segundo ele, as relações de trabalho nas lavouras de café foram estabelecidas a partir de uma cultura de escravização já existente na região. “A região tem uma cultura de escravizar que vem lá do passado”. Em sua fala, Tiãozinho contou que essa incidência mobilizou a reunião de cerca de 30 sindicatos de trabalhadores rurais da região para o combate ao trabalho análogo à escravidão na cafeicultura. Porém, apesar dessa atuação coletiva gerar ações de fiscalização e negociação, havia todo ano o retorno de trabalhadores e trabalhadoras a condições de exploração. “Esse foi um dos piores períodos”, lamentou.

Jorge Ferreira dos Santos, representante da ADERE-MG, relatou que essas ações tiveram continuidade e foram fortalecidas nas décadas seguintes através do estudo da legislação e da compreensão sobre o papel do Estado na negociação. “Nós não queríamos mais negociar com o fazendeiro, nós queríamos que o Estado fosse lá cumprir o papel dele”, destacou. Em sua fala na mesa-prosa, Santos mencionou que, posteriormente, também houve uma compreensão de que o desafio não era apenas a relação com os fazendeiros, mas com as empresas que lucram com os alimentos produzidos em propriedades rurais onde trabalhadores são submetidos a condições análogas à escravidão. “Como nós, trabalhadores e sociedade, cobramos, desse povo, melhores condições de trabalho no campo?”, questionou.

Em sua fala, Santos também citou, como um dos caminhos para lidar com esse desafio, o Projeto de Lei 572/2022, que estabelece diretrizes para a aplicação de normas nacionais e internacionais de proteção dos Direitos Humanos e a promoção de políticas públicas sobre o tema. Atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei propõe a responsabilização das empresas com domicílio ou economicamente ativas no território brasileiro pelas violações de Direitos Humanos causadas direta ou indiretamente por suas atividades. Nele, essa responsabilidade é estendida para toda a cadeia de produção e inclui entidades econômicas e financeiras que participam investindo ou se beneficiando de etapas do processo produtivo, inclusive quando não há relação contratual formal. O projeto de lei prevê ainda a adoção, por elas, de mecanismos de controle, prevenção e reparação de violações de Direitos Humanos decorrentes de suas atividades.

Os mecanismos legais aplicáveis

A procuradora do trabalho Dra. Letícia Moura sinalizou que a exploração de trabalhadores em condição análoga à escravidão pode ser configurada como uma lesão que não fere apenas a dignidade das pessoas diretamente envolvidas, mas de toda a sociedade. Segundo ela, a depender da gravidade do fato apurado, existe, portanto, entre os mecanismos legais aplicáveis, a possibilidade de previsão, dentro de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), de uma indenização por dano moral coletivo. “Essa indenização se fundamenta no ato ilícito que foi cometido pelo empregador. Tendo em vista a gravidade daquela lesão, ela ultrapassa a esfera individual de um empregado e configura uma lesão a toda a coletividade e à própria sociedade”, explicou.

Durante a sua fala, a procuradora do trabalho também comentou sobre outro dispositivo legal ainda não aplicado no Brasil para os casos de trabalho análogo à escravidão: a expropriação de terras. Conforme o texto do artigo 243 da Constituição Federal, “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Outro fundamento jurídico para a adoção dessa medida, citado por ela, é a relação do direito da propriedade rural com o cumprimento da sua função social e a não violação da dignidade humana, expressa no artigo 186 da Constituição Federal e na Lei 8.629/1993 que regulamenta e disciplina disposições relativas à reforma agrária. “Está muito claro que o cumprimento da função social da propriedade rural está diretamente relacionada com o cumprimento da legislação trabalhista e, sobretudo, da legislação que visa o bem-estar dos trabalhadores”, salientou a procuradora.

Os desafios para o combate ao trabalho análogo à escravidão

No final da mesa-prosa, a coordenadora do CRDH Sul de Minas, Larissa Goulart, indicou como um dos desafios do combate ao trabalho análogo à escravidão, o atendimento integral às pessoas resgatadas. “Esse trabalhador necessita muito mais do que um acordo financeiro para que ele possa voltar para o município de origem, precisa de atenção, de escuta, entender que ele está em uma situação de violação mas que é possível resgatar a dignidade de vida dele”, afirmou a cientista social. Segundo ela, o restabelecimento da vida digna desses trabalhadores e trabalhadoras depende não apenas de uma ação jurídica, mas do apoio da assistência social e do atendimento à saúde física e mental, e, para tanto, é necessária uma ação articulada entre diferentes categorias profissionais. “Estabelecer diálogos com outras categorias profissionais também é extremamente interessante porque somos todos trabalhadores e trabalhadoras, então a gente precisa trazer esse nível de consciência de classe para que possamos estar juntas lutando por condições de trabalho mais dignas sejam elas no campo ou na cidade”, comentou.

Larissa Goulart e outros participantes da mesa-prosa também dialogaram sobre a necessidade de ações de prevenção para impedir o retorno de trabalhadores e trabalhadoras a condições análogas à escravidão. Nesse âmbito, a cientista social sugeriu a importância da implementação de políticas públicas nos municípios de origem desses trabalhadores e trabalhadoras que promovam educação de qualidade, geração de emprego e renda, investimentos na agricultura familiar, e possibilitem a retirada das pessoas da situação de vulnerabilidade socioeconômica. O representante da ADERE-MG, Jorge Ferreira dos Santos, também indicou a necessidade de investimento na agricultura camponesa para a saída do ciclo vicioso ao qual esses trabalhadores e trabalhadoras são submetidos.

A atividade encerrou com um chamado para o envolvimento de toda a sociedade no combate ao trabalho análogo à escravidão, para o enfrentamento de uma realidade dura, que, como sinalizou Jorge Ferreira dos Santos, está acontecendo nesse momento, durante o período de colheita de café. “Eu acho que é papel nosso, enquanto sociedade, individualmente e também coletivamente lutar contra o trabalho análogo ao escravo, e afirmar que nós não queremos no nosso bule todo dia de manhã um café que seja fruto da exploração da vida do trabalhador mas sim um café que seja fruto de relações justas e de vida digna”, ressaltou Larissa Goulart.

A realização da mesa-prosa marcou o início das ações do Grupo de Trabalho sobre o Trabalho Análogo à Escravidão criado no mês de abril de 2023 pela Coordenação Ampliada do Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas e será seguida de novas atividades de formação e mobilização a serem realizadas por meio das parcerias constituídas entre movimentos sociais, instituições sociopolíticas de defesa e proteção do trabalho e a universidade pública.

Como assistir a mesa-prosa

O vídeo da mesa-prosa realizada com o tema “A situação do trabalho análogo à escravidão na região do Sul de Minas Gerais” está disponível no canal do Youtube do Polo Agroecológico e pode ser acessado nesse link: https://www.youtube.com/watch?v=JfMgBs7_Ze8. Para receber notificações sobre as próximas edições do Polo em Prosa é possível se inscrever no canal no Youtube (@poloagroecologicodosulesud1050) ou acompanhar as publicações na página do Instagram (@passomg) do Polo.

O Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas

O Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas é um espaço de articulação política e construção coletiva da agroecologia, instituído pela Lei Estadual nº 23.939, de 23 de setembro de 2021, e possui um papel político e atuante na defesa da luta pela terra, dos territórios, dos sistemas agroalimentares agroecológicos, da soberania alimentar, do meio ambiente e da biodiversidade.

Por meio da articulação entre diversos atores, o Polo apoia e organiza atividades de diagnóstico, sistematização, mobilização e Construção do Conhecimento Agroecológico como pesquisas, encontros, reuniões, cursos e oficinas, baseadas na valorização dos saberes ancestrais das agricultoras e agricultores e da ciência socialmente relevante e comprometida com a vida.

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