por Cléber Folgado
No último dia 22 de outubro de 2015, numa página de internet da Veja, Leandor Narloch – o auto-intitulado “Caçador de mitos”, buscou (des)construir o suposto mito em relação aos dados divulgados amplamente por diversos meios de comunicação de que o consumo de agrotóxicos no Brasil equivale a 5,2 litros de agrotóxicos por habitante. A reflexão feita pelo caçador de mitos merece nosso breve comentário.
A massificação desta informação se deu a partir do ano de 2011, quando em 7 de abril, em referência ao dia mundial da saúde, foi lançada a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. A Campanha tem por objetivo visibilizar os problemas causados pelos agrotóxicos e ao mesmo tempo apresentar as alternativas agroecológicas, rompendo assim com as barreiras impostas pela mídia e meios de comunicação que em geral a respeito do tema. A mídia frequentemente omite dados importantes em relação aos problemas causados pelos agrotóxicos na população brasileira.
Obviamente, nenhum brasileiro bebe 5,2 litros de agrotóxicos, pois se assim o fosse estaríamos todos mortos. Aqui já se mostra como a informação é tergiversada, pois o que foi divulgado pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) é que o consumo de agrotóxicos no Brasil EQUIVALE a cerca de 5,2 litros de agrotóxicos por habitante. Aliás, esse já é um dado ultrapassado, que refere-se ao ano de 2008, quando o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxico do mundo. Atualmente, o consumo de agrotóxicos no Brasil equivale a cerca de 7,3 litros de agrotóxicos por habitante se dividimos a quantidade de litros vendidos pela população brasileira.
O autor do texto pergunta: “Por que tantos jornalistas confiam em estatísticas divulgadas por ONGs e ativistas?”. A resposta não é difícil. Por um lado, porque nestas ONGs se encontram parte dos maiores estudiosos independentes sobre o tema, com pesquisas realizadas por anos em parceria com Universidades (muitos destes ativistas são inclusive professores e pesquisadores universitários), e por outro lado, porque estes ativistas e ONGs não são financiados pelas empresas de agrotóxicos, de modo que suas pesquisas não estão comprometidos com os lucros das empresas, mas sim com a saúde da população brasileira. Afinal, ao tratar do tema agrotóxicos, estamos falando de um problema de saúde pública.
Talvez a credibilidade dada por estes jornalista deve-se ao fato de que compõe a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto Nacional do Câncer (INCA) e a também citada Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), Movimentos Sociais de sujeitos que atuam diretamente com o problema, como o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) e a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), dentre tantos outras entidades e organizações. Talvez seja também porque os inúmeros dados apresentados por estes sujeitos são decorrentes de pesquisas cientificas, ou mesmo de dados oficiais apresentados pelos órgãos estatais.
Uma rápida leitura do texto publicado possibilita-nos perceber claramente, que o suposto caçador de mitos, é na verdade um alimentador de mitos. Vejamos alguns dos mitos contidos de forma sútil ou até grotesca em seu texto:
a) “Os agrotóxicos não oferecem riscos à saúde“: Uma verdade cientificamente provada por inúmeros estudos é de que os agrotóxicos oferecem perigo a saúde humana, animal e ambiental. As reações pode ser de dois tipos: as intoxicações agudas (imediatas que podem causar fraqueza, cólicas abdominais, vômitos, espasmos e tremores musculares, convulsões, irritações das conjuntivas, espirros, excitações, tonteiras, dor de cabeça, dificuldade respiratória, hipertermia, perda do apetite, sangramento nasal, desmaios, conjuntivites, entre outros) e as intoxicações crônicas (resultado das pequenas quantidades de agrotóxicos que se acumulam no organismo ao longo de anos e podem vir a gerar doenças como cânceres, alterações cromossomiais, dermatites de contato, efeitos neurotóxicos retardados, alergias respiratórias e outras, asma brônquica, irritações nas mucosas, hipersensibilidade, doença de Parkinson, teratogêneses, indução da produção de enzimas hepáticas, lesões hepáticas, fibrose pulmonar, desregulação endócrina, etc.). As manifestações se diferenciam a depender do grupo químico ao qual pertence o agrotóxico.
b) “É possível o uso seguro dos agrotóxicos“: infelizmente é impossível o uso seguro dos agrotóxicos, pois tais substâncias se destacam justamente por serem “cidas”, ou seja, por eliminarem a vida. No entanto, um dos problemas é que não atingem apenas as “pragas”, mas também um conjunto de insetos, plantas, etc. que são benéficos a equilíbrio ambiental, de modo que quanto mais se usa agrotóxicos, mais se necessita utilizar. Nem mesmo os equipamentos de proteção individual (EPIs) deixam o trabalhador seguro, visto que o agrotóxico pulverizado é inalado pelo trabalhador ao respirar, e a depender da forma de pulverização isso é ainda mais perigoso. No caso da pulverização aérea, por exemplo, segundo dados apresentados pelo IBAMA na Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados, 70% daquilo que se pulveriza é deriva técnica, ou seja, não atinge a “praga” que se quer, mas se espalha pelo ar contaminando mananciais de água, comunidades, pessoas, animais, entre outros que podem estar a quilômetros de distância de onde se realiza a pulverização.
c) “É preciso de agrotóxicos para produzir no Brasil“: busca-se justificar que em função do clima tropical e da intensa produção no Brasil faz-se necessário o uso de agrotóxicos. Na verdade trata-se de um ciclo vicioso de uso de agrotóxicos que teve inicio em 1965, quando o governo militar criou o Sistema Nacional de Crédito Rural, que vinculava obrigatoriamente o acesso ao crédito à aquisição do pacote tecnológico composto por agrotóxicos e fertilizantes químicos. Mais tarde em 1975 no âmbito do II Plano Nacional de Desenvolvimento, é criado o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas, que disponibilizou recursos financeiros para a instalação de indústrias nacionais e estrangeiras de produção de agrotóxicos. Assim se instalou a chamada Revolução Verde, que aprimorada é conhecida hoje como Agronegócio. A lógica de produção do agronegócio é que impede a produção sem o uso de agrotóxicos, ou em outras palavras, o agronegócio é extremamente dependente do uso de venenos. Como dito antes, na medida em que se usam agrotóxicos na agricultura, estes venenos matam um conjunto de animais que são benéficos ao processo produtivo, de modo que vai se causando um desequilíbrio ambiental, possibilitando o surgimento de novas “pragas” e algumas até resistentes aos agrotóxicos utilizados, de modo que a cada ano, não só tem-se a necessidade de utilizar mais venenos, como se tem a necessidade de utilizar venenos com composição toxicológica mais forte, ou seja, mais venenosos. Assim, se mantem o ciclo vicioso de uso de venenos na agricultura. Todavia é extremamente possível realizar um processo de transição e garantir a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos com base na agroecologia. O relator especial da ONU para o direito a alimentação, o professor belga Olivier De Schutter apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 10/03/2014, seu relatório final intitulado “O potencial transformador do direito à alimentação”, onde afirma que “a erradicação da fome e da malnutrição é um objetivo alcançável. Para tanto, contudo, não será suficiente apenas refinar a lógica dos nossos sistemas alimentares – ela precisa, ao contrário, ser invertida”. O relatório afirma que os países devem apoiar a adoção de práticas agroecológicas como componente essencial para o futuro da segurança alimentar e da garantia do direito à alimentação. Vale lembrar que a promessa de acabar com a fome no mundo foi o principal elemento que justificou a introdução da revolução verde, e como vemos mais de meio século depois, ainda temos uma em cada sete pessoas no mundo passando fome.
d) “Os alimentos consumidos no Brasil não estão contaminados por agrotóxicos“: O consumo despreocupado de alimentos é um perigo, pois infelizmente nossos alimentos encontram-se sim contaminados por agrotóxicos. O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) que desde 2000 monitora os resíduos de agrotóxicos em alimentos tem mostrado a contaminação dos alimentos. O PARA de 2011 demonstrou que 78% dos alimentos estavam com resíduos de agrotóxicos, sendo que 42% estavam dentro das margens legais estabelecidas como limite aceitável de resíduo (quantidades que também são questionáveis) e 36% das amostras insatisfatórias, que significam que estavam com limite máximo de resíduos acima do permitido em lei, ou com resíduos de agrotóxicos não permitidos para aquela cultura, ou ainda, com resíduos de agrotóxicos que estão proibidos no país. Em 2012, tivemos uma leve redução, de modo que 64% das amostras continham agrotóxicos, sendo que 35% está dentro do limite permitido, e 29% de amostras insatisfatórias. Sendo assim, apenas 36% das amostras coletadas (que foram de apenas 7 culturas) estavam sem resíduos de agrotóxicos. Por fim, vale destacar que os últimos resultados apresentados pelo PARA em 2013, referentes aos anos de 2011 e 2012, demonstram uma preocupante diminuição da quantidade de amostras analisadas em relação aos anos anteriores. Em 2009 e em 2010, foram analisadas 20 amostras (abacaxi, alface, arroz, banana, batata, beterraba, cebola, cenoura, couve, feijão, laranja, maçã, mamão, manga, morango, pepino, pimentão, repolho, tomate e uva), já em 2011 foram analisadas APENAS nove culturas, e em 2012 reduziu-se duas mais, ou seja, analisou-se apenas 7 culturas. Dentre os ingredientes analisados não encontra-se o glifosato que responde por cerca de metade dos agrotóxicos utilizados no país. Uma das pautas da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, reforçada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva na obra intitulada “dossiê ABRASCO, um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde” é que a ANVISA possa aumentar o número de culturas analisadas, bem como garantir que seja analisada se existem resíduos de glifosato, pois acredita-se que com isso, será possível demonstrar que infelizmente nossos alimentos estão mais contaminados do que realmente imaginamos.
e) “Os agrotóxicos são utilizados nas culturas de exportação e isso diminui a contaminação e os riscos para a população brasileira“: Esse é um enorme mito, pois como dito acima, as grandes plantações realizam em geral, pulverização com uso de aeronaves, o que faz com que 70% daquilo que se aplica seja deriva técnica, portanto, muitas plantações de alimentos são atingidas diretamente por estes venenos.
Devemos ainda considerar que a quantidade de agrotóxicos mencionada (7,3 litros) equivale a produtos formulados, ou seja, é aquela quantidade de agrotóxicos que o agricultor compra. No entanto, para realizar a pulverização este agrotóxico é diluído em uma quantidade ainda maior de água, aumentando assim a quantidade de produto que será pulverizada e portanto, aumentando a exposição. A quantidade a ser diluída depende do tipo de agrotóxico, da “praga” da cultura, etc. essa quantidade deve ser receitada pelo agrônomo responsável (isso acontece muito pouco, já que é possível comprar agrotóxicos sem o receituário com facilidade, ainda que seja proibido por lei). Existem agrotóxicos, por exemplo, em que se dilui 100 ml em 20 litros de água, ou seja, a quantidade de exposição é ainda maior do que os meros 7,3 litros.
Dizer que o Brasil se encontra próximo da quantidade de agrotóxicos que outros países usam é apenas uma manipulação de informação, visto que dos 50 agrotóxicos mais utilizados aqui no Brasil, 22 deles estão proibidos de serem utilizados na Europa, e alguns deles desde a década de 70. Portanto não se pode comparar a quantidade apenas, mas o grau de toxicidade a que estamos expostos, que sem dúvidas é muito maior. Exemplo disso, foi a permissão para o uso de um agrotóxico que sequer tinha registro no Brasil, pois havia tido seu pedido negado em função do grau de toxidade, mas em virtude de uma manobra do Ministério da Agricultura, tal agrotóxico foi liberado para ser utilizado a princípio no combate a Helicoverpa Harmigera, trata-se no neurotóxico benzoato de emamectina.
Por fim, dizer que nos parece bastante presunção questionar as informações carregadas de cientificidade e sistematizadas pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, visto que está congrega em si mais de 60 organizações, dentre elas a ABRASCO também mencionada na matéria do caçador de mitos. O Dossiê da ABRASCO que tratou dos agrotóxicos é um marco na literatura cientifica sobre o tema, visto que mais de 40 estudiosos expuseram resultados de anos de pesquisa sobre os agrotóxicos.
Portanto, ficam aqui as sugestões para que o caçador de mitos, possa procurar “reais” mitos para DES-CONSTRUÍ-LOS, e não para ALIMENTÁ-LOS como o fez na superficial, medíocre e mal intencionada matéria publicada. Obviamente que por se tratar da Veja não nos assusta tal posição, visto que esta é um antro de desinformação e manipulação da verdade.
[1] Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS, membro do Observatório da Politica Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e Águas – OBTEIA e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, estudioso da legislação de agrotóxicos.