Por João Peres
O joio e o trigo
Em 7 de outubro de 2021, a edição do Jornal Nacional foi aberta com a notícia de que a economia patina. O comércio sofre, a indústria virou pó, o consumo segue no congelador. O telejornal mais importante do país passou à margem de um acontecimento que, talvez, tenha sido o mais importante do dia: a Brasil Agro, empresa do setor do agronegócio, vendeu uma pequena fatia de sua fazenda em Alto Taquari, no Mato Grosso, por R$ 589 milhões.
Tem sido assim sempre que se trata do agronegócio: cifras astronômicas sobre balança comercial e recorde de exportação, sem uma explicação do que significam na prática. Bom, na prática, a venda de 3.723 hectares de uma empresa desconhecida do público é o ápice temporário de um processo tão bem organizado que os recordes se renovam a cada dia.
Não importa que a economia esteja mal. Não importa que metade da população esteja na miséria. Na verdade, alguns dos péssimos indicadores econômicos colocam ainda mais combustível no motor do agronegócio. Agricultores combalidos, inflação de alimentos e supervalorização dos grãos criam um cenário perfeito para um ciclo de expansão sem precedentes.
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Cada hectare da Brasil Agro custou ao comprador (cujo nome não foi divulgado) o equivalente a R$ 218 mil. O dobro do que a empresa conseguiu por uma outra fatia dessa mesma fazenda apenas um ano antes. E quase o triplo em relação a 2019. Usando os preços atuais da soja, o comprador precisaria de 23 anos de produção intensa para recuperar o montante de R$ 589 milhões. Um exemplo evidente de que não é de soja que estamos falando. Se antes as terras brasileiras já haviam se transformado num dos investimentos mais lucrativos do mundo, agora avançamos a um novo patamar.
Na verdade, o fato mais importante do dia não se deu em Alto Taquari, mas a 1.040 quilômetros dali. É na Avenida Faria Lima, no centro de São Paulo, que pulsa o coração do agronegócio. Lá, são tomadas as decisões sobre o destino de nossas terras, da Amazônia e do Cerrado, dos povos indígenas e da produção dos nossos alimentos. É ali que fica a sede da Brasil Agro, uma empresa sobre a qual você vai ouvir nos próximos anos.
O edifício situado no número 1309 da Faria Lima tem o mesmo visual de muitos outros que abrigam empresas de agro e tecnologia. São prédios enormes, espelhados, com torres envidraçadas, cascatas e fontes. Não há mais resquício dos sobradinhos de classe média que foram demolidos para dar espaço à operação de verticalização da região.
Brasil Agro e SLC Agrícola são as duas empresas mais importantes em um processo simples: comprar terras, deixá-las prontas para cultivo, esperar a especulação fundiária e vender no melhor momento. Poucas semanas antes de anunciar o negócio em Alto Taquari, a Brasil Agro havia lucrado com um outro pedaço de fazenda na Bahia, por um valor até então altíssimo: R$ 130 milhões. Mas aqueles R$ 53 mil por hectare ficaram parecendo brincadeira de criança.
Desde que Jair Bolsonaro vislumbrou o poder, a Brasil Agro vislumbrou as nuvens. O valor das ações da empresa mais que triplicou desde as eleições de 2018. “Eu falo que a gente está dez anos à frente do mercado. Por que eu falo dez anos à frente do mercado? Nós começamos a terceirizar nossa operação lá no início da companhia, em 2006 e 2007. O mercado está começando a terceirizar operações agrícolas agora, depois que passou a reforma trabalhista em 2016”, disse André Guillaumon, presidente da empresa, durante uma transmissão online. Ou seja, estar à frente do mercado é desafiar leis que em algum momento serão revogadas.
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Cada vez que uma peça do tabuleiro se movimenta em Brasília, o mercado financeiro responde em São Paulo. Ou em algum lugar na nuvem digital que faz negócios em cima de milho, boi e soja com a mesma facilidade com que negocia armas, petróleo e carros.
Nem sempre é fácil entender qual peça do tabuleiro se mexeu. A ofensiva do agronegócio é tão bem coordenada e tão vertiginosa que se torna complexo procurar uma relação direta entre um pico de movimentação financeira e uma medida política. Mas o balanço geral não deixa qualquer dúvida: o agronegócio abraçou de vez o mercado financeiro. Ou o contrário.
A valorização ano a ano de uma fazenda da Brasil Agro / Arte/joio e o trigo
No final de abril, a Comissão de Valores Mobiliários, que regula o mercado, enviou um questionamento à Brasil Agro: o que estava acontecendo com as ações da empresa? A movimentação era gigantesca: R$ 770 milhões em um único mês. Foram cinco milhões de papéis negociados num único dia – apenas um ano antes, a empresa raramente ultrapassava o patamar de duzentos mil, e durante o mês inteiro movimentou apenas R$ 53 milhões.
A empresa respondeu que não tinha conhecimento de nenhuma irregularidade. E informou que dois relatórios importantes, do BTG Pactual e da Empiricus, recomendavam o investimento em seus papéis. “Tais relatórios, apesar de não trazerem nenhuma informação nova não divulgada anteriormente pela Companhia, são utilizados por agentes de mercado em suas decisões de investimento e podem ter contribuído para as oscilações indicadas.”
Como tem sido a praxe entre os atores do agronegócio relacionados ao mercado financeiro, o recorde da Brasil Agro rapidamente ficou para trás. Em maio a empresa chegou a R$ 819 milhões.
Assim como se dá em outros investimentos relacionados ao agronegócio, a Brasil Agro passou a atrair parte do enxame de pessoas que investem na bolsa – abordamos esse fenômeno na primeira reportagem da série. “A gente viu uma entrada importante de pessoas físicas na companhia. A gente teve aí, em seis meses, um salto de 3 mil CPF para 9 mil CPF na companhia”, disse André Guillaumon. Não custa lembrar que isso foi em julho de 2020, antes de um novo boom da Brasil Agro.
Em outubro de 2021, foi a vez de a SLC Agrícola responder ao questionamento da CVM sobre por que havia tanta movimentação em torno dos papéis da empresa. Foram seis meses seguidos com mais de R$ 1 bilhão em negociações, a começar pelo recorde de maio. O R$ 1,7 bilhão daquele mês representa 17 vezes mais do que o obtido um ano antes.
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O recorde se deu na semana em que a Câmara aprovou o projeto de lei que dispensa o pedido de licenciamento ambiental para vários empreendimentos. Relatado pelo deputado e ex-ministro da Agricultura Neri Geller (PP-MT), o PL 3.729, de 2004, facilita o uso agrícola de terras indígenas e quilombolas que não tenham sido demarcadas.
Mas, nesse caso específico, a CVM estava questionando sucessivos dias de frenesi durante setembro. De um lado da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal discutia (e não concluía) o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Do outro, o Senado avançava com o projeto sobre licenciamento ambiental. Os papéis da SLC e da Brasil Agro tiveram forte movimentação ao longo de todo o mês.
Este ano, a SLC comprou uma outra gigante, a Terra Santa, e arrendou uma grande área em Correntina, na Bahia. A estimativa da própria empresa é de chegar a 660 mil hectares, um crescimento de 40% em relação ao começo de 2021 e o equivalente a quatro cidades e meia de São Paulo.
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Terra e água à disposição
A mistura de desmatamento da Amazônia e do Cerrado, queimadas, avanço sobre terras indígenas, revogação de subsídios para a agricultura familiar e ode eterna ao agro pode fazer algumas pessoas arrancarem os cabelos, mas é motivo de euforia entre investidores, para quem tudo isso é uma garantia de que o enorme território e as reservas de água brasileiras estarão à disposição pelos próximos anos, até que se encontre uma nova maneira para especular.
Até 2020, a Brasil Agro havia negociado 85 mil hectares e um total de R$ 925 milhões. Bastante. Mas pouco, perto de 2021. Com apenas 9.546 hectares vendidos, a empresa fez R$ 786 milhões de caixa. Se nos 14 anos anteriores a média de negociação foi de R$ 10 mil por hectare, agora já está em R$ 80 mil.
A Brasil Agro controla 280 mil hectares, duas vezes a cidade de São Paulo. “Nós somos a única empresa do mercado que de fato combina resultados. A gente tem um resultado imobiliário e o resultado operacional, e isso está no nosso DNA”, afirmou Guillaumon, em referência ao modelo de negócios que mescla a venda de terras com a produção de soja, milho e cana-de-açúcar.
Criada em 2006 e controlada por investidores argentinos, a empresa nem poderia ser dona de terras no Brasil, a menos que tivesse obtido autorização do Incra e do Congresso Nacional. A Brasil Agro é investigada desde 2016 por aquisições ilegais de terras.
Se havia alguma incerteza sobre a possibilidade de estrangeiros comprarem imóveis rurais, a Brasil Agro não parecia ter dúvida alguma de que conseguiria autorização. Tanto assim que os dois principais gestores dos novos investimentos do agronegócio, BTG Pactual e XP Investimentos, têm listado a Brasil Agro como um ótimo negócio.
O maior banco de investimentos da América Latina é um emblema do casamento entre agronegócio e mercado financeiro. O BTG lançou os primeiros fundos ligados ao setor, esperando atrair um total aproximado de R$ 1 bilhão.
O prédio da empresa é, também, um emblema da nova fase da Avenida Faria Lima, que se transformou no coração do mercado financeiro. As duas torres do Edifício Pátio Victor Malzoni, com 19 andares, são ainda a morada do Google e ficam no ponto-chave de um processo de valorização imobiliária que tem os fundos de investimento como fator-chave. Nas últimas duas décadas, dezenas de sobrados foram abaixo para dar lugar a um mar de edifícios gigantes e espelhados que abrigam corporações de tecnologia, startups e, agora, o agronegócio.
É esse processo que o mercado financeiro espera replicar na zona rural. No ano passado, os fundos imobiliários bateram recorde de movimentação, com mais de um milhão de pessoas físicas investindo. O montante de R$ 53,9 bilhões representou um crescimento de 67% sobre 2019. Como mostramos na primeira reportagem da série, este ano foram aprovados e regulamentados os fundos de investimento do agronegócio, Fiagro, que já começam a movimentar seus primeiros milhões.
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De réu a conselheiro
O dono do BTG, André Esteves, chegou a ser preso durante a Operação Lava Jato, mas foi liberado por determinação do Supremo Tribunal Federal. Em outubro de 2021, veio à tona o áudio de uma palestra que ele deu a jovens investidores. Na condição de oráculo, ele explicou a influência que tem sobre o STF, o Banco Central, o Ministério da Economia e o Congresso Nacional.
E nos ajudou a entender por que o agronegócio e o mercado financeiro são tão fiéis a Jair Bolsonaro. “Você fala com o gerente de uma fazenda e o sujeito vai votar no Bolsonaro. Tá convencido de que é Bolsonaro”, explicou, acrescentando que essas pessoas não caíram na ladainha antivacina do presidente nem são a favor de uma ditadura. Ele exemplificou o que tem ouvido quando circula por áreas rurais:
“Sabe o que é? O vizinho aqui limpou o pasto. Há uns dois anos atrás o Ibama e uns petistas meteram uma multa no cara porque ele está suprimindo Mata Atlântica. Não dá para conviver com esse negócio. Há uns anos atrás andou um negócio de MST aqui e era um estresse aqui todo dia, com homem armado na fazenda.” Na visão dele, o vento no Brasil sopra a favor da “centro-direita” e ninguém quer “maluquice”.
Se alguém quer saber para que lado sopra o vento, basta olhar a Faria Lima. “A gente está tentando junto com bastante gente aí brilhante também tocar esse bumbo de terras para estrangeiro”, disse André Guillaumon, o presidente da Brasil Agro. Durante uma transmissão online, ele disse que há uma articulação em torno do senador ruralista Irajá Abreu (PSD-TO) para derrubar essa restrição. Isso foi em julho de 2020.
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“A Sociedade Rural, Abag [Associação Brasileira do Agronegócio], todo mundo, porque a gente entende que eu falo sempre que a restrição não é uma restrição à terra, é uma restrição ao capital. O que está se restringindo é a entrada do capital no país, e isso a gente tem que tirar.”
O bumbo tocado na Faria Lima ecoava por todo o Brasil. Afinal, nas projeções da Brasil Agro, R$ 40 bilhões ao ano estavam esperando pela liberação da venda de terras para estrangeiros. Considerando uma compra recente feita pela empresa, de R$ 9 mil por hectare, esse dinheiro seria suficiente para adquirir quatro milhões e meio de hectares por ano. Dá um estado do Rio de Janeiro. Sim, um estado do Rio de Janeiro. Nós refizemos essa conta dez vezes para termos certeza de que estávamos certos.
Em junho de 2021, mais uma vez a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, fazia a função de captadora de recursos do agronegócio. “Sabemos da existência de trilhões de dólares em busca de boas alternativas de investimento, melhores retornos e riscos menores”, disse, durante o Fórum de Investimentos Brasil 2021, um encontro promovido por um sem-fim de corporações e think tanks privados. “E o agronegócio brasileiro tem resposta para isso. Nosso mercado bancário e de capitais está maduro e pronto para receber investidores do mundo todo.”
Se em 2016 o antecessor, Blairo Maggi, fazia promessas, Tereza Cristina entregava encomendas: os trilhões do mercado financeiro já fluíam com a mesma naturalidade que as águas do rio Amazonas. Na visão do governo, os R$ 250 bilhões do Plano Safra se tornaram insuficientes, e é preciso captar ao menos R$ 500 bilhões ao ano no mercado financeiro.
Porém, sem o padrinho político, a atual equipe do Ministério da Agricultura não teria conseguido. Tereza Cristina levou adiante articulações, estruturas e ideias lançadas durante a gestão de Blairo Maggi. Então, de certa maneira, tudo começa com o golpe de 2016.
Preparando o terreno
Dez dias depois de o impeachment de Dilma Rousseff passar na Câmara, Michel Temer recebeu formalmente o documento do Instituto Pensar Agro (IPA) com as prioridades para o biênio. O IPA é uma organização criada na virada da década e que mudou radicalmente as relações da bancada ruralista dentro do Congresso Nacional ao aumentar o grau de organização e coesão dos parlamentares. É de dentro da mansão do IPA que saem as diretrizes que guiam a atuação de deputados e senadores.
Em 2016, ao ser o fiador da queda de Dilma, o agronegócio deixou patente: daqui por diante, quem quiser se tornar e se manter como presidente da República, vai precisar pedir a bênção do IPA.
No documento, a questão fundiária era uma das prioridades. A organização queria que imóveis rurais pudessem ser comprados por empresas controladas por capital estrangeiro. É um ponto bastante curioso para uma bancada que alega que a demarcação de terras indígenas serve para a atuação de ONGs estrangeiras interessadas em roubar nossas riquezas. E para um setor econômico que devastou o Cerrado e está devastando a Amazônia movido pelo mote militar de “integrar para não entregar”.
Em julho de 2016, Michel Temer esteve no Global Agribusiness Forum, em São Paulo. O agronegócio deu o apoio explícito a que o Senado terminasse de derrubar Dilma, numa carta firmada por 46 organizações.
Cesário Ramalho, presidente do conselho que organiza o encontro, explicou que a decisão de apoiar Temer foi “uma opção muito justa” e que o agronegócio havia cometido o erro de não se manifestar politicamente em outras ocasiões. “Nós temos que abrir o país. Temos que debater, temos que falar que nós fazemos agricultura com respeito ao meio ambiente, com respeito às questões sociais, com respeito às questões do capital. Nós temos que ligar com o mundo. O mundo é global.”
No discurso, Temer disse que o Brasil deve muito à agricultura e se comprometeu a viajar pelo mundo para promover o setor. “Devo até registrar que muitos investidores estrangeiros ainda estão esperando um pouquinho. Para ver o que é que acontece, daqui um mês, um mês e meio, para depois investirem, Cesário, com muita força aqui no nosso país. E o que é preciso no país é exatamente restabelecer a credibilidade, a confiança.”
Blairo Maggi estava na primeira leva de ministros nomeados por Temer. O ex-deputado, ex-senador e governador de Mato Grosso não é qualquer um nesse grupinho: é um enorme dono de terras, produtor de soja e uma pessoa que milita pela financeirização do agronegócio.
Pouco antes de o Senado confirmar a queda de Dilma, o novo ministro da Agricultura reabriu a Câmara Temática do Crédito, Seguro e Comercialização do Agronegócio. O grupo passou a ser presidido por Ivan Wedekin, representante da bolsa de valores de São Paulo, hoje em dia chamada B3, com a participação de bancos, cooperativas de crédito, seguradoras e organizações do agronegócio.
Wedekin foi secretário de Política Agrícola na gestão de Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura no primeiro mandato de Lula. E foi a pessoa central na criação das Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs) e dos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs), que começaram a ser negociados em 2005, ainda que em volumes baixos.
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O agro não cabe mais
A Câmara Temática retoma alguns debates sobre como fazer do financiamento privado a fonte predominante de recursos para o agronegócio. Alguns participantes chegam a projetar que, com o tempo, o investimento se torne exclusivamente privado.
Para isso, é preciso criar novos mecanismos para as LCAs e os CRAs. E é preciso quebrar o controle dos bancos sobre o setor, permitindo que milhares de instituições financeiras participem.
Um mês depois da reabertura da Câmara Temática foi anunciado o Subcomitê de Agricultura da Iniciativa Brasileira de Finanças Verdes (IBFV). Apesar do nome de órgão público, é um mecanismo privado composto por Banco do Brasil, B3, Cargill, Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Ecoagro, Sociedade Rural Brasileira e bancas de advogados. O grupo diz controlar o equivalente a R$ 18 trilhões em ativos, ou dois PIBs do Brasil.
O subcomitê teria como missão “identificar e propor oportunidades de financiamento verde. Isso inclui o fortalecimento das linhas de financiamento existentes e a criação de novas alternativas para atrair capital nacional e internacional de longo prazo para projetos sustentáveis no Brasil”.
Na mesma época, a Globo lança a campanha “Agro é Pop”, uma iniciativa completamente atípica para os padrões da emissora ao misturar conteúdo editorial e propaganda. Estava óbvio que havia uma articulação do agronegócio para abrir uma guerra de narrativas e consolidar a ideia de que o setor é o futuro do Brasil – e o mote de que o “Agro é tudo” serve para homogeneizar a zona rural, sem distinções entre camponeses, indígenas, ribeirinhos, latifundiários, nem entre modelos de produção.
Em outubro de 2016, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) promoveu um evento no qual se falou sobre a necessidade primordial de aumentar o financiamento privado do setor. Na ocasião, Wedekin declarou que era preciso aumentar o conhecimento dos produtores rurais sobre a existência de uma série de títulos ligados ao agro:
“As cooperativas têm centenas de milhares de associados e podem usar uma parte dos estoques de dívida desses produtores com elas para começar a embutir o CDCA [Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio] ou participar de operações de CRA [Certificado de Recebíveis do Agronegócio].”
Mas ampliar o conhecimento obviamente seria insuficiente. Era preciso criar novos mecanismos. Foi, então, que entrou em cena a Climate Bonds Initiative, que pelo menos desde 2016 realiza eventos em Londres e Nova York para a promoção do agronegócio brasileiro. O roadshow já está se tornando uma espécie de tradição anual do ministro da Agricultura.
Apesar de se apresentar como “instituição sem fins lucrativos”, a Climate Bonds é um think tank que busca promover investimentos. No caso, “soluções para a mudança do clima”, cujo potencial de valor é estimado num documento entregue ao Ministério da Agricultura em US$ 100 trilhões – para que se tenha uma ideia, o PIB dos Estados Unidos equivale a um quinto disso.
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Conhecer os desejos da terra
Em novembro de 2019, atendendo a essa espécie de nova tradição, a ministra Tereza Cristina esteve no roadshow da Climate Bonds em Nova York. Na ocasião, órgão público e think tank privado assinaram um memorando para promover a emissão de títulos verdes no Brasil.
“Este tipo de iniciativa é possível a partir da edição da Medida Provisória do Agro [MP 897/2019], que estabelece mecanismos para investimento no setor rural brasileiro. A MP está tramitando no Congresso”, disse a ministra.
A MP do Agro, como ficou conhecida, foi apresentada em outubro. Um slide do Ministério da Agricultura mostra que a formulação do texto envolveu 18 equipes do Executivo, com destaque para o Banco Central, o Ministério da Economia, a Casa Civil e a Comissão de Valores Mobiliários, além do próprio MAPA.
A MP define uma série de instrumentos que atrelam o agronegócio e o mercado financeiro. Enquanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, começava a passar a boiada no desmonte da legislação, Tereza Cristina concretizava um novo arcabouço legal destinado a ser, nas palavras da ministra, “um divisor de águas” para o crédito rural brasileiro.
Em meio a tudo isso, seguiam caminhando o PL da Grilagem, o projeto que dá fim à demarcação de terras indígenas, o PL que afrouxa o licenciamento ambiental e muitas outras medidas. A boiada já havia chegado à Faria Lima.
Apresentação feita na Câmara de Crédito do Ministério da Agricultura / Governo Federal
De um lado, a Lei do Agro pretende baixar os juros no financiamento, usando para isso a garantia do Estado. De outro, pretende desregular geral para expandir os “recursos livres” do mercado privado de capitais.
Na visão do secretário-adjunto da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, José Angelo Mazzillo Jr., a então MP “aperfeiçoa a Cédula de Produto Rural (CPR) e os títulos do agro, lançando as bases para um mercado privado de crédito com maior liberdade de contratação e segurança jurídica, menos oneroso e mais transparente”. Conforme ele disse numa reunião da Câmara Temática, o agro brasileiro “não cabe” no crédito público.
Como era de se esperar, a MP não enfrentou resistências no Congresso Nacional, e em 7 de abril de 2020 já estava convertida em lei. Se antes o mercado financeiro demonstrava euforia com os rumos do governo, agora essa euforia era ampliada à enésima potência.
Em entrevista ao The Intercept dos Estados Unidos, Kelli Mafort, do MST, questionou a possibilidade de subdividir propriedades rurais para entregar como garantias em empréstimos. “É uma privatização da reforma agrária”, diz, em referência à ideia de que fica mais fácil contrair uma dívida e, como consequência, perder a terra.
Sem cercas
Já em junho de 2020, a Climate Bonds Initiative e a Iniciativa Brasileira de Finanças Verdes publicaram um estudo conjunto, o Plano de Investimento para a Agricultura Sustentável, encampado com tanta ênfase pelo Ministério da Agricultura que se torna difícil saber onde estão as linhas entre público e privado – o trabalho foi coordenado por um servidor do BNDES que, em seguida, migrou a uma corporação privada de saneamento.
O documento aposta que o agronegócio pode atrair R$ 692 bilhões em finanças “verdes”. E comemora várias das mudanças introduzidas pela Lei do Agro, em particular aquelas que atrelam as terras brasileiras a investidores estrangeiros. “Esse desdobramento recente pode promover e facilitar emissões de títulos verdes para produtores médios, cooperativas e outras empresas do setor de agronegócio.”
A Climate Bonds é financiada pelos pesos-pesado do mercado financeiro, como BlackRock, State Street Global Advisors, Citigroup, Goldman Sachs, HSBC, Credit Suisse, Barclays e BNP Paribas.
Como mostra a investigação feita pelo Intercept dos Estados Unidos em parceria com o Joio, a empresa não verifica se os títulos “verdes” estão de fato cumprindo com o prometido: ela repassa essa atividade a terceiros. Em outra frente, as grandes gestoras de investimentos do mundo fizeram lobby contra mecanismos que poderiam definir padrões obrigatórios, e não voluntários.
“Estamos abertos a ambas abordagens”, disse Leisa Souza, líder da CBI para a América Latina. “Claro, não vamos dizer que é preciso haver regulação e que isso precisa ser feito, porque, mesmo que consideremos apenas o mercado como um todo, a autorregulação funciona muito bem.”
A Climate Bonds, via de regra, aparece em cena acompanhada de uma outra empresa que você provavelmente desconhece: a EcoAgro. Criada em 2009, é a maior emissora de CRAs do Brasil – até setembro de 2021, eram R$ 25 bilhões, pouco menos de um terço do total.
No formulário apresentado ao mercado financeiro, a EcoAgro lista os riscos relacionados a seu negócio. E um chama atenção: “Movimentos sociais podem afetar as atividades dos emitentes dos Créditos: movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra, são ativos no Brasil.
Invasões e ocupações de terrenos agrícolas por grande número de participantes desses movimentos são comuns e, em algumas áreas, os proprietários não contam com a proteção efetiva da polícia nem com procedimentos eficientes de reintegração de posse.” Nesse sentido, a conjuntura fortemente repressiva atenua bastante o risco para os investidores – em outras palavras, repressão vira dinheiro.
Trecho do relatório da EcoAgro / Reprodução
Assim como tem a primazia em relação aos CRAs, a EcoAgro explicitamente aposta em liderar a era dos CRAs verdes. Em mais uma mistura entre público e privado, em abril de 2021 Tereza Cristina anunciou a emissão, em caráter experimental, de CRAs com garantia do BNDES. O valor total de R$ 29 milhões é intermediado pela EcoAgro para uma das maiores cooperativas do país, a Cotrijal, do Rio Grande do Sul.
Em paralelo, a EcoAgro esperava captar mais R$ 60 milhões, dessa vez para a usina Rio Amambai, em Naviraí, no Mato Grosso do Sul. O mercado de títulos verdes vai passando do papel à prática.