Por Bruno Santiago l Le Monde Diplomatique – Publicado em 8 de maio de 2023.
No dia 1º de março de 2023, o plantio do trigo transgênico HB4 foi aprovado no Brasil pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Alvo de muitas críticas, o cancelamento dessa liberação foi exigido por um coletivo de entidades da sociedade civil por meio de um ofício enviado no dia 20 de março ao Presidente do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), o Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Rui Costa. Também receberam o documento os dez ministérios do governo federal que compõem o CNBS, além do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e o Ministério Público Federal (MPF).
De acordo com as organizações, a decisão foi tomada sem que houvesse análises técnicas e debates públicos suficientes. Foi solicitada audiência com as ministras e os ministros que compõem o Conselho para cobrar a suspensão da decisão da CTNBio, destacando a ilegalidade da aprovação, que viola a Lei de Biossegurança (nº 11.105/2005) e o Protocolo de Cartagena, instrumento da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da qual o Brasil é signatário.
A organização não governamental Terra de Direitos, que acompanha o caso, relata que a decisão da CTNBio surpreendeu “por se basear em um processo anterior, de 2021, aberto exclusivamente, como afirmava a própria Comissão, para a importação da farinha de trigo transgênica da Argentina, e não para o cultivo do trigo HB4 em território brasileiro”. A coalizão da sociedade civil também exigiu, no ofício enviado, a proibição da liberação da importação com o mesmo argumento de ilegalidade e falta de análises técnicas suficientes para garantir a biossegurança da população brasileira.
A entidade também destaca que a Comissão atualmente é composta por membros indicados por ministérios do governo de Jair Bolsonaro (PL), denunciando a falta de transparência e o apagão de informações com relação ao caso. “A única audiência sobre o trigo transgênico realizada até hoje pela CTNBio trouxe informações consideradas inconsistentes pelas entidades do campo socioambiental”, afirma a Terra de Direitos.
A atuação do CTNBio sempre previu a realização de audiências públicas para que se debata e avalie coletivamente, por cientistas, especialistas e representantes da sociedade civil, a chegada de fenômenos inéditos em nosso país, como é o caso do trigo transgênico HB4. É o que afirma o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, integrante do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). “Nós gostaríamos de verificar o impacto sobre a sociobiodiversidade brasileira e isso não foi feito. Isso é uma atitude que dribla a lei de biossegurança”, explica.
Saúde e sociobiodiversidade em risco
Por estar associado ao agrotóxico glufosinato de amônio, herbicida comprovadamente nocivo à saúde humana e animal, o trigo transgênico HB4 pode apresentar uma série de riscos para a biossegurança se a sua produção ocorrer nas lavouras do território nacional. Na prática, se a liberação de fato ocorrer, a população brasileira poderá consumir diretamente a farinha deste tipo de trigo em alimentos que fazem parte da base de nosso sistema alimentar, como pães, biscoitos, bolos e massas.
Por ser mais resistente ao agrotóxico, a empresa argentina Bioceres, detentora da patente do trigo geneticamente modificado, recomenda a aplicação de dois litros de glufosinato de amônio para cada hectare plantado. Ao Jornal Brasil de Fato, Melgarejo explicou que as análises e testes realizados com o HB4 foram insuficientes.
“As análises de risco realizadas com a farinha de trigo, que foi utilizada como subterfúgio para que o plantio fosse aprovado no Brasil, merecem uma preocupação maior. Não consta que tenham sido analisados impactos sobre animais, mesmo que tenham sido sobre ratos, que não nos representam tão bem assim. Mas não foram analisados o ciclo de vida completo do animal, foram ensaios de muito curto prazo, então os problemas de longo prazo de intoxicação crônica desaparecem em estudos de 90 dias”, enfatiza o engenheiro.
“É um problema sob o aspecto da vida em seu todo, em todas as faixas etárias, e que vai estar presente, pela primeira vez na história, em uma alimentação básica humana – porque as mudanças desse tipo realizadas na soja ou no milho se destinavam especialmente à alimentação animal”, destaca Leonardo. Ainda de acordo com o especialista, estudos apontam que o agroquímico oferece riscos relacionados a processos degenerativos para pessoas adultas, como o Alzheimer, e para bebês, por conta das deformações no processo de divisão celular.
A CTNBio, em resposta aos questionamentos da sociedade civil sobre os riscos do glufosinato de amônio associado ao trigo transgênico HB4, afirma que não tem competência para avaliar os efeitos dos agrotóxicos na análise de biossegurança, cabendo apenas aos órgãos de fiscalização essa avaliação, que são a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
A falácia do aumento da produtividade
A cientista argentina Raquel Chan, bioquímica e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET), coordenou o processo de pesquisa que originou a criação da variedade genética do trigo HB4, licenciada pela Bioceres.
Em entrevista ao canal Agromais, veículo nacional voltado às pautas e interesses do agronegócio e de pecuaristas, Raquel apresenta uma lista considerável de características que foram incorporadas à semente geneticamente modificada a partir da combinação com um gene de girassóis. Segundo a cientista, o HB4 é mais tolerante à seca, consumirá menos água, reduzirá a emissão de gases poluentes e será, de maneira geral, “mais tolerante” ao meio ambiente.
Entretanto, o argumento da tolerância à seca associado ao aumento da produtividade das lavouras não se sustenta, segundo Larissa Packer, advogada socioambiental da Grain e doutoranda em sociologia rural pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Embora prometam aumento da produtividade sob regime de seca, com o tempo as plantas acabam adquirindo resistência ao agrotóxico a que a semente transgênica foi associada, então mais de um herbicida passa a ser usado – ou uma maior quantidade dos defensivos químicos – para que aquela planta possa manter aquele nível de produtividade. Essa promessa também foi feita com o caso da soja e do milho e até hoje não foi cumprida. Outro ponto é que aumenta-se, portanto, o volume de resíduos de agrotóxicos sobre a planta e nos alimentos produzidos a partir deles”, explica Larissa.
De acordo com o engenheiro agrônomo argentino Fernando Frank, em entrevista para o portal O Joio e o Trigo, o “trigo transgênico rendeu bem abaixo do restante do trigo, abaixo até da média. Nós sistematizamos isso, por região, comparando com variedades não transgênicas. Com dados de ocorrência de seca no ano de 2021, vimos que o HB4 não é resistente em termos de rendimento.”
Foram monitorados 53 mil hectares semeados com o trigo HB4 em 12 províncias da Argentina. No comparativo com a produção de trigo a nível nacional no país, sistematizada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca, o trigo da Bioceres rendeu 17% menos. É o que mostra o estudo do Instituto Nacional de Sementes (Inase) na Argentina, segundo apuração de O Joio e o Trigo.
Venda casada: o pacote tecnológico
A produção de transgênicos, em boa parte do mundo, está associada ao aumento da utilização de agrotóxicos, sobretudo em países que são grandes produtores e exportadores de commodities, como é o caso do Brasil. Ao ser questionada sobre os interesses que impulsionam a liberação do trigo HB4, a advogada da Grain explicou que o movimento pode ser compreendido, de maneira simplificada, como uma “venda casada” de um pacote tecnológico.
“Essas construções genéticas muitas vezes estão associadas ao uso de agrotóxicos e estes, por sua vez, também possuem as suas patentes. Ou seja: esse pacote de transgênicos combinados com o uso de determinados agroquímicos está completamente associado a interesses comerciais, muito mais do que interesses nutricionais ou de acordo com preferências e necessidades do consumidor ou da sociedade”, destaca.
“Quando falamos em sementes transgênicas estamos falando de um pacote tecnológico que está sob o poder de poucas corporações no mundo todo desde a Revolução Verde, ocorrida a partir dos anos 60. No início dos anos 80, empresas sementeiras em sua maioria pertenciam a empresas familiares e não chegavam a dominar 1% do mercado mundial. Com o controle da propriedade intelectual sobre as sementes e agrotóxicos e sua absorção pela indústria química, quatro corporações passaram a controlar metade das sementes comerciais e 62% do mercado de agrotóxicos no mundo em 2020”, explica.
“Para se ter uma ideia, a última liberação de milho transgênico da Monsanto torna o milho tolerante a diversos agrotóxicos de alta toxicidade, como o dicamba, glufosinato, herbicidas do grupo dos ariloxifenoxipropionato e ácido 2,4- diclorofenoxiacético (2,4-D). Não por outro motivo, aumentou-se em 21 vezes a aplicação de agrotóxicos sobre culturas de milho entre 2008, quando ocorreu a liberação do milho GM, e 2021, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)”, conta Packer.
“O que está em jogo é o aumento do lucro destas corporações, fazendo com que cada vez mais os produtores rurais fiquem dependentes de insumos externos, tendo de comprar este pacote tecnológico a cada safra ao invés de produzir suas próprias sementes e tecnologias”, enfatiza Larissa.
Cerrado na mira
O trigo hoje, no Brasil, é plantado principalmente nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. De acordo com Paulo Barroso, presidente do CTNBio, essa liberação pode colaborar para a expansão do plantio de trigo em regiões como a do Cerrado, por exemplo, que já teve mais da metade de sua mata nativa desmatada para dar lugar, predominantemente, às commodities soja e milho, além da pecuária bovina.
Três dias após a liberação ser aprovada pela Comissão, Paulo Barroso declarou, em entrevista, que “essa característica [do trigo HB4] deve afetar, particularmente, a produção de trigo no Cerrado. O trigo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina é plantado no inverno chuvoso, portanto, este tipo de trigo vai contribuir para que seja mais uma opção da ‘safrinha’ no Cerrado”.
Barroso também falou sobre as expectativas com relação ao futuro da nova cultura no Brasil. “A gente espera, primeiro, que esse trigo contribua para que a gente seja autossuficiente, pois somos um grande importador de trigo, um dos maiores importadores de trigo no mundo hoje, e quem sabe, se a gente conseguir levar esse trigo para o Cerrado, e ele tiver o mesmo sucesso que a soja tem, que o milho tem, que outras culturas têm, certamente a gente um dia pode se tornar um exportador”, explica.
Sobre o possível impacto para o Cerrado e seus povos, Larissa afirma que este tipo de visão só reafirma o que organizações e redes como a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado já compreendem muito bem: a região se tornou uma zona de sacrifício para o agronegócio.
“O plantio das comodities transgênicas associadas aos agrotóxicos gera, por um lado, o ecocídio do bioma e de suas zonas de transição e, de outro lado, o genocídio das populações que ali vivem, pois acabam sendo atacadas por pulverização aérea, pela utilização constante de agrotóxicos, pelo desmatamento e pela destruição da biodiversidade. São também expulsas de seus territórios para dar lugar ao latifúndio e sofrem uma verdadeira guerra química, tendo sua saúde afetada porque se escolheu o Cerrado para o sacrifício em prol de um falso desenvolvimento econômico”, enfatiza Larissa.
Em julho de 2022, mais de cinquenta organizações que integram a Campanha em Defesa do Cerrado realizaram a Audiência Final da Sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) que julgou e condenou estados e empresas pelos crimes de ecocídio do Cerrado e genocídio de seus povos.
Larissa, que colaborou com o processo de construção da Peça de Acusação do TPP, afirma que “diversas alergias, cânceres e problemas neurológicos são relatados em todas as pesquisas de campo que foram feitas durante o processo do Tribunal Permanente dos Povos. Não houve uma comunidade que não relatasse diversos efeitos de intoxicação por agrotóxicos. Na maior parte das vezes são regiões de produção de soja, milho ou algodão, sempre transgênicos. E essa questão não é tratada pela CTNBio”, conta.
O mito do combate à fome
O coletivo de organizações que exige a revogação da decisão do CTNBio contesta o argumento de que o trigo transgênico contribuiria com o combate à fome, que hoje atinge pelo menos 33 milhões de pessoas no Brasil, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). De acordo com as entidades, a introdução do produto no Brasil poderia custar alto economicamente, já que estaria atrelada ao pagamento de royalties às empresas titulares da biotecnologia transgênica.
O fato de a Bioceres possuir capital aberto na Bolsa de Valores de Nova Iorque e alianças com transnacionais do ramo da alimentação, como Monsanto e Syngenta, pode tornar o Brasil – como produtor e potencial exportador do trigo HB4 – mais vulnerável às oscilações do mercado internacional para estruturar sua política alimentar, segundo entidades da sociedade civil.
“Não à toa, pouco antes dela conseguir a liberação na Argentina, a Bioceres abriu capital na Bolsa de Valores de Nova Iorque, na Nasdaq. Entre os seus acionistas iniciais estava o grupo Monsanto, o que deixa muito evidente que existe um benefício comercial grande por trás da comercialização de sementes patenteadas, mesmo no início de diversas dessas tecnologias de hibridização”, explica Larissa.
“O impacto da aprovação de trigo transgênico, portanto, recairia no valor da comida. Cabe destacar que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil fechou 2022 com mais que o dobro da inflação sobre os alimentos e bebidas (11.64%), face à inflação geral (5,79%)”, publicou a coalizão de entidades.
Caminhos para reversão
Ainda é possível reverter a decisão tomada pela CTNBio e é com essa possibilidade que as organizações e movimentos estão contando. “O Conselho Nacional de Biossegurança e o governo federal precisam, urgentemente, reavaliar a proposição e interpretar da maneira adequada, de acordo com a nossa Constituição e com o Protocolo de Cartagena”, explica Larissa, que defende que a política de biossegurança deve ser revista e democratizada, assim como a composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, para que o país possa, de fato, tomar decisões pautadas no princípio da precaução e da soberania alimentar.
Naiara Bittencourt, advogada socioambiental da Terra de Direitos, afirma que a decisão poderia ser revogada, em última e definitiva instância, pelos dez ministérios que compõem o CNBS. “Esse conselho pode reavaliar a decisão tomada pela CTNBio de acordo com os interesses da soberania nacional, econômicos, por isso nós acionamos esses órgãos por meio do ofício que apresenta todos os riscos e ilegalidades do processo”, destaca.
Desde o envio do ofício que exige a revogação da liberação do cultivo e importação do trigo HB4, em 20 de março, até a data da publicação desta reportagem, o CNBS não se manifestou ou ofereceu qualquer resposta ao grupo de entidades da sociedade civil.
Já a CTNBio elaborou um parecer técnico que foi encaminhado, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia, para o grupo de entidades que exigem a revogação da liberação. Neste momento, as entidades estão trabalhando conjuntamente para responder ao Ministério e a CTNBio.