Naiara Bittencourt, Alice Resadori e Emiliano Maldonado para o Nexo Jornal | 15 de outubro de 2022
“Uma doença estranha das plantas se espalhou pela área toda, e tudo começou a mudar. (…) Havia ali um estranho silêncio. Os pássaros, por exemplo, para onde é que tinham ido? (…) Não havia agora som algum.” Em 1962, a “Primavera Silenciosa”, de Rachel Carson, denunciou a mortandade de insetos e animais nos Estados Unidos, causada por agrotóxicos organoclorados, hoje denominados poluentes persistentes orgânicos. O silêncio envenenado que fere a sinergia ecossistêmica permanece ainda 60 anos após o alerta de Carson.
Em 2022, além das mortes dos ecossistemas, se silenciam as vítimas, violadas em seus corpos e territórios pelo uso de agrotóxicos, especialmente comunidades camponesas, de agricultores familiares, tradicionais e povos indígenas. Se silenciam ao serem coagidos a não denunciarem essas violações e ao não encontrarem informações e respostas nos órgãos que deveriam proteger os direitos dessas populações.
É o que demonstra a pesquisa “Agrotóxicos e violações de direitos humanos no Brasil”, que analisou 30 casos de violação coletiva de direitos humanos no país. Embora haja uma robusta dimensão normativa e direitos formalmente assegurados, incluindo instrumentos jurídicos internacionais e nacionais, a efetivação da responsabilização dos agentes violadores, a reparação das vítimas e a consolidação de mecanismos de não repetição são frágeis. As principais áreas contaminadas são residências ou moradias, evidenciado em 14 casos, o que demonstra alto grau de exposição de famílias inteiras, incluindo crianças e bebês. Em 23 casos houve intoxicação da população atingida.
A pesquisa identificou que a pulverização aérea é a forma de aplicação com maior potencial de dano coletivo. Embora haja um extenso rol normativo sobre o tema, o fato de 70% dos casos se tratarem dessa forma de aplicação demonstra que as estipulações não têm dado conta de limitar a violação de direitos humanos. Para prevenir – e reparar – essas violações, o Conselho Nacional de Direitos Humanos aprovou no dia 16 de setembro a Resolução nº 24 de 2022, que estabelece diretrizes para implementação de mecanismos de mitigação dos danos. Entre as diretrizes, o aumento das distâncias mínimas para pulverização, o aviso prévio às populações atingidas e a realização da consulta prévia a indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
A resolução é um importante instrumento na luta pela prevenção da violação de direitos provocada por agrotóxicos, uma vez que em apenas pouco mais de um terço dos casos analisados houve responsabilização dos violadores e, em nenhum deles, as vítimas foram integralmente reparadas. Entre as dificuldades de acesso e efetivação da Justiça pelas comunidades, está a omissão ou morosidade na atuação estatal, especialmente no atendimento imediato da população atingida e na produção probatória da violação. Em vários dos casos houve demora na realização dos laudos técnicos, o que justifica a baixa judicialização das violações – apenas 13 casos foram levados ao Poder Judiciário.
Apesar de todos os estados brasileiros apresentarem suas próprias legislações estaduais e alguns indicarem o tema na Constituição Estadual, poucos indicam restrições aos agrotóxicos. Em 17 estados há Políticas de Agroecologia e cinco têm normativas sobre pulverização terrestre. Minas Gerais é o único estado, até agora, a aprovar um Plano de Redução de Agrotóxicos e o Paraná adota um Protocolo de Avaliação das Intoxicações Crônicas por Agrotóxicos e a Linha Guia da Atenção às Populações Expostas aos Agrotóxicos. Iniciativas que merecem reprodução, mas que encontram dificuldades de implementação.
Já em relação à pulverização aérea, apenas os estados do Acre e Ceará trazem diretrizes mais protetivas sobre essa modalidade e apresentam resultados. O Acre veda a aplicação de agrotóxicos dentro de um raio de 10 km de áreas habitadas e de Unidades de Conservação. O Ceará é pioneiro em proibir a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o seu território.
Ao menos 19 municípios brasileiros também adotaram legislações que proíbem ou restringem severamente a pulverização aérea de agrotóxicos. Legislações estas questionadas judicialmente por sindicatos patronais ou organizações representativas do agronegócio. É fundamental que os tribunais estaduais e, especialmente, o STF (Supremo Tribunal Federal) mantenha sua posição jurisprudencial de garantia de legislações mais protetivas à saúde e à biodiversidade. São esses mecanismos mais restritivos ao uso de agrotóxicos que mais previnem violações coletivas.
Em relação à fiscalização desses instrumentos, há a fragmentação de competências administrativas dos três entes federados e, no caso de denúncias na temática de agrotóxicos, múltiplos órgãos devem ser acionados, especialmente nas áreas da saúde, agricultura e meio ambiente, sem centralização de um canal e ficando a encargo das comunidades atingidas as diligências nessas variadas escalas e seções temáticas. É comum a resistência dos órgãos em atender às solicitações de coleta de amostras e análise de resíduos de agrotóxicos e a notificação de intoxicação por agrotóxicos por profissionais de saúde.
Os órgãos deveriam agir com base em devidas diligências, para identificação dos danos, das fontes de contaminação e agentes violadores, responsabilizando-os criminalmente e administrativamente; e atender as populações atingidas imediatamente. Também é importantíssimo adotar medidas de monitoramento de agrotóxicos na saúde, alimentos, água e biodiversidade, aprimorando mecanismos e programas nacionais e avançando nos estados.
É urgente, em síntese, que o Estado brasileiro, em todos os âmbitos e unidades da federação, adote outra postura para mitigar e afastar as violações coletivas de direitos humanos causadas pelo uso de agrotóxicos. Precisamos frear a arma, que, como afirma Carson, “é tão primitiva como o porrete do homem da caverna”, que numa barragem química se atira contra a vida. E essa vida está rompendo o silêncio, de forma poderosa e resiliente, mesmo em sua delicadeza.
Naiara Bittencourt é advogada e coordenadora do Programa Iguaçu da Terra de Direitos. Mestra e doutoranda pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). Integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e da Articulação Nacional de Agroecologia.
Alice Resadori é advogada, doutora em direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Professora do MBA Diversidade nas Organizações na Universidade La Salle.
Emiliano Maldonado é advogado e professor de direito Socioambiental do IFRS (Instituto Federal do Rio Grande do Sul). Doutor pela UFSC (Universidade de Santa Catarina).
Leonardo Pillon é advogado e mestre em direito. Integra a Articulação pela Preservação da Integridade dos Seres e da Biodiversidade e a Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada.
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