Por Lucineia Miranda de Freitas
Na Revista Opinião Saúde, Trabalho, Ambiente, Direitos Humanos & Movimentos Sindical e Sociais
O Ser Humano é parte da natureza e a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra ontra si mesmo. (Rachel Carson)
As aeronaves remotamente pilotadas, popularmente conhecidas como drones, têm sido utilizadas nos tempos recentes para diversos fins. De ações recreativas a bélicas, passando por mapeamento de mobilizações e festas, inventário de vegetação e urbano e vigilância. Em um país agroexportador
de commodities agrícolas, como o Brasil, não demorou para ser utilizada na pulverização de agrotóxicos. Pelo princípio da precaução e prevenção, o uso dessa tecnologia na pulverização aérea de agrotóxicos deveria ser amplamente debatido de forma política, social e acadêmica, não apenas a
partir dos parâmetros técnicos, visto que pode incidir em diversas questões cotidianas, como o direito à saúde e ao meio ambiente saudável. O uso de qualquer tecnologia para pulverização de agrotóxicos, pela especificidade da prática, de ser uma ação intencionalmente contaminante do ambiente, conforme afirmaram Pignati et al (2007), requer debate amplo envolvendo questões ambientais, sociais e de saúde pública, e não apenas uma questão de técnica agronômica.
No entanto, a sociedade não tem feito esse diálogo, e, com poucos dados sobre os riscos, derivas e das possibilidades, ou impossibilidade, de controle e rastreamento, a técnica passou a ser considerada como sustentável, quase declarada de interesse social. E assim, passou a ser utilizada em todo território nacional, inclusive burlando legislações que restringiam a técnica da “pulverização aérea” em determinados municípios e estados. A partir desse uso consolidado o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), decidiu disciplinar a técnica a partir da elaboração da Portaria Nº 298, de 22/09/21.
De acordo com esta regulação, todos os operadores de drones de pulverização (pessoas físicas ou jurídicas) deverão ter registro no Mapa a partir das secretarias estaduais e do Distrito Federal. E devem ser qualificados para operar esse equipamento e aplicar o produto com segurança. As empresas que pretendam utilizar drones para pulverização, deverão contratar engenheir(a)o agrônomo, piloto agrícola remoto certificado pelo Ministério e técnico agrícola com curso de executor em aviação agrícola para missões em campo. No caso dos agricultores, será
preciso contratar engenheiro agrônomo e piloto agrícola remoto certificado.
As empresas e os agricultores terão que fazer relatórios técnicos de cada operação, guardá-los por, no mínimo, dois anos e disponibilizá-los a eventuais fiscalizações por parte do Mapa. A portaria também regula distanciamento mínimo de segurança, de 20 metros de povoações, cidades, vilas, bairros, moradias isoladas, agrupamentos de animais, mananciais de captação de água para abastecimento de população e outras reservas. Além da falta de parâmetros técnicos para essa definição, ela é inferior ao distanciamento da pulverização terrestre, podendo abrir precedentes para
redução no distanciamento nesta modalidade também. Importante destacar o pressuposto de que as empresas, produtores e aplicadores se autofiscalizam juntamente com a deficiência de fiscalização dos órgãos responsáveis, por falta de pessoal, de estrutura ou de interesse político para realização da mesma, como verificado por Freitas (2016). Mesmo as aeronaves tripuladas têm deficiência no processo de fiscalização e controle, o que tem levado a diversos incidentes e acidentes com agrotóxicos, incluindo o uso intencional sobre territórios em conflitos, como arma química, conforme denúncias sistemáticas da “Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida” e de diversos pesquisadores e meios de comunicação.
Os princípios da precaução e da prevenção e os limites para a fiscalização fizeram com que
diversos municípios e até mesmo o estado do Ceará produzissem leis restritivas ao uso da pulverização aérea. No entanto, nos momentos de elaboração dessas legislações, o uso de drone não estava colocado como uma possibilidade. É nessa brecha legal (nem proibido, nem regulado) que diversos produtores do agronegócio iniciaram o uso dos drones, mesmo nos territórios proibidos. Com isso não demorou a surgir denúncias de contaminação das comunidades.
De acordo com reportagem do Brasil de Fato, apenas no ano de 2024, 214 comunidades denunciaram contaminações por agrotóxicos aplicados por drones, apenas no estado do Maranhão. Os casos correspondem a 94% de todas as denúncias envolvendo pesticidas coletadas pela Fetaema (Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão), pela Rama (Rede de Agroecologia do Maranhão) e pelo Laboratório de Extensão, Pesquisa e Ensino de Geografia da Universidade Federal do Maranhão.
O uso de drone na pulverização de agrotóxicos, além de acarretar diversos problemas, vem
provocando diversos retrocessos legais. Talvez o mais expressivo destes venha do estado do Ceará, onde o atual governador Elmano de Freitas do Partido dos Trabalhadores (PT), apesar da sua história construída como defensor dos direitos humanos, inclusive na atuação contra o uso de agrotóxicos, mobilizou sua base parlamentar para aprovar a flexibilização da Lei 16.820/19, nomeada de Zé Maria do Tomé, que proibia a pulverização aérea em todo o estado.
Zé Maria do Tomé, liderança camponesa na região de Chapada do Apodi/CE, destacado na luta contra a pulverização aérea de agrotóxicos, foi assassinado em 21 de abril de 2010. Assumindo um discurso sem base material, a alteração foi realizada em um processo muito rápido, sem diálogo com as organizações e movimentos sociais, academia, pesquisadores e demais entidades de referência. O agronegócio, que tinha interesse no processo de flexibilização. Foi o único setor ouvido. O fato de que diversas comunidades denunciavam o uso dos Drones, mesmo antes da alteração dessa lei estadual, e que esse uso se dava inclusive no período noturno, visando dificultar ou impedir a fiscalização, nos remete à reflexão: se, sendo usado irregularmente, o estado não consegue fazer o controle, como vai garantir que as normativas sejam efetivadas?
Esse processo é bastante preocupante, visto que, nesta pauta dos agrotóxicos, temos vivenciado um retrocesso generalizado, desde a aprovação do PL do veneno (Projeto de Lei 1.459/22) no ano de 2023, até a liberação massiva de agrotóxicos, sendo que, no ano de 2024, foram 663 aprovações, maior número anual desde 2000 (Poder360, 2024). Em tempo de crise ambiental, é necessário coragem para enfrentar as bases estruturais desse modo de desenvolvimento, o principal responsável pela degradação ambiental, destruição dos biomas com desmatamentos e queimadas, contaminação da vida com agrotóxicos e outros produtos químicos. É importante enfatizar que
existem alternativas ao agronegócio. Nesse sentido, é necessário construir política, técnica e socialmente as condições para que a agroecologia e a agricultura dos povos do campo, das águas e das florestas possa se efetivar, ampliando as experiências que já vêm sendo construídas pelas organizações e movimentos sociais do campo a nível do Brasil e da América Latina.
Referência: Freitas LM. Pulverização aérea com agrotóxicos: acidente ou crime?. Dissertação.
Programa de Pós-graduação em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.
Fundação Oswaldo Cruz, 2016.
Avante na luta contra agrotóxicos