Por Franciele Petry Schramm
Da Terra de Direitos
Poucos casos demonstram de forma tão nítida a pressão do agronegócio sobre as Terras Indígenas do país quanto o julgamento da tese jurídica do chamado Marco Temporal. Essa tese apresentada por ruralistas defende que indígenas só terão demarcadas as terras ocupadas por eles desde antes de 5 de outubro de 1988. O entendimento do judiciário sobre essa tese deve ser consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no próximo dia 25 de agosto, durante o julgamento de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ. O entendimento dos ministros neste caso será de repercussão geral – ou seja, será aplicada em todos os processos de demarcação de terras indígenas.
Com mais de 150 pedidos de participação de entidades na condição de amicus curiae – ou seja, de “amigos da corte” – que se propõem a apresentar mais informações que possam ajudar na avaliação dos ministros, o julgamento da Tese do Marco Temporal pode ser um dos com maior quantidade de pedidos apresentados de amicus. A disputa de um entendimento de que o direito à terra deve estar vinculado ao tempo da promulgação da Constituição Federal tem mobilizado em peso os ruralistas: até agora, foram ao menos 136 pedidos para o ingresso de amicus curiae de entidades que defendem a tese do Marco Temporal. Dessas, 115 são entidades representativas ruralistas – como de Sindicatos Rurais –, duas entidades em defesa da propriedade, nove federações estaduais da Agricultura e Pecuária, além da própria Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil. A Associação Brasileira de Produtores de Soja também pediu para ingressar na ação.
A maior parte dos pedidos de amicus foi feita por entidades dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Bahia. Em Minas Gerais, aliás, todos os 81 sindicatos ruralistas entraram com pedido de participação. Na safra 2019/2020, o estado utilizou uma área de 1,6 milhões de hectares para a produção de grãos. As Terras Indígenas localizadas em Minas Gerais não representam nem 8% da área ocupada pela soja: somadas, ocupam uma área de 125.585 hectares. De acordo com informações do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, são ao menos 31 mil indígenas vivendo no estado.
Dos pedidos de ingresso na ação, cerca de 30 são contrários à tese do Marco Temporal, entre eles o da Terra de Direitos. Pedro Martins, advogado popular da organização, explica que essa tese contradiz o direito originário da demarcação de terras indígenas, reconhecido no artigo 231 da Constituição Federal de 1988. “O Marco Temporal se mostra cada vez mais na contramão do texto da Constituição, e vem sendo respaldada por organizações do campo ruralista, que entendem que as terras devem ter uma destinação para produção de soja e milho, e não para a garantia da vida e manutenção da cultura dos povos indígenas no Brasil”, destaca. E alerta: “A intenção de travar os processos de demarcação para criação de campos de soja e milho não significa de maneira alguma o desenvolvimento do país, nem distribuição de renda e riqueza. Pelo contrário: significa o controle das terras do Brasil pelas grandes corporações e por essas organizações ruralistas”.
Terra Indígena Piripkura
Dos pedidos de ingresso na ação apresentados pelos ruralistas ao STF, ao menos 17 apontam o desejo de participação pela existência de conflito direto com alguma terra indígena. O histórico dos conflitos indicados, no entanto, revela uma prática sistemática de invasão e expulsão dos indígenas de suas terras.
Exemplo disso pode ser percebido no pedido de amicus apresentado pela Associação dos Produtores Rurais da Gleba Pau Brasil de Colniza, do Mato Grosso, que menciona a existência de conflito com a Terra Indígena Piripkura. A entidade foi formalizada menos de um mês antes de apresentar o pedido de ingresso na ação.
Localizada na região entre os rios Branco e Madeirinha, nos municípios de Colniza e Rondolândia (MT), a Terra Indígena Piripkura é habitada por um grupo de indígenas isolados voluntariamente, mas tem sido alvo de invasores. Apesar de não ser demarcado, o território está sob restrição de uso, uma forma de regulamentação que impede a entrada de invasores no local como forma de proteger indígenas isolados. A portaria de restrição de uso expirará no dia 18 de setembro, e já traz preocupações. Com o enfraquecimento da fiscalização no local, as invasões ao território se acentuaram em 2020.
Em julho, a Justiça Federal determinou a retirada de madeireiros e invasores que transformavam parte do território em pasto. Segundo reportagem do jornal O Globo, pela ação de desmatadores o território indígena perdeu em nove meses uma área de floresta equivalente a 2 mil campos de futebol. Na decisão, o juiz federal reconheceu o atraso na demarcação da Terra Indígena, mas mesmo o andamento do processo de demarcação é marcado por ataques.
Em abril, a Justiça Federal deu à Fundação Nacional do Índio (Funai) 90 dias para criação de um grupo técnico para agilizar a demarcação da TI. Os nomes indicados pela Funai para a composição do grupo de trabalho têm sido questionados pela ligação com o agronegócio e pela falta de competência técnica para executar o trabalho. O Ministério Público Federal já entrou com uma petição na Justiça Federal para a suspeição de três servidores indicados ao GT.
Um deles, o geógrafo Joany Marcelo Arantes foi assessor parlamentar do falecido deputado federal Homero Pereira, ex-presidente da Frente Parlamentar Agropecuária e autor do Projeto de Lei n. 490/2007, que transferia a competência de demarcação de terras indígenas da União para o Congresso Nacional. Além disso, Arantes já participou no desenvolvimento de projetos junto a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato), entidade que também ingressou com pedido de amicus na ação do Marco Temporal.
Nas redes sociais, o técnico da Funai também demonstra seu posicionamento em defesa dos ruralistas. Em uma publicação de dezembro de 2018, Arantes parabeniza o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pela indicação de Nabhan Garcia ao cargo de Secretário de Assuntos Fundiários. “Vi de perto o comprometimento do Sr. Naban Garcia, com a segurança jurídica e ordenamento no campo” (sic), escreveu. Nabhan Garcia é ex-presidente da União Democrática Ruralista e já foi investigado pela contratação de pistoleiros para formação de milícias armadas contra trabalhadores sem-terra.
Terra Indígena Dourados
No pedido de amicus, o Sindicato Rural de Amambaí também destaca o conflito com as Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá II e Iguatemipeguá II, no Mato Grosso do Sul. Localizada nos municípios de Caarapó, Amambai e Laguna Carapã, a TI Dourados-Amambaipeguá I vive conflitos também no seu processo de demarcação. Parte da demarcação da TI foi anulada com base no entendimento do marco temporal em uma decisão liminar, em 2017, dentro de ação movida pelo proprietário de uma fazenda sobreposta à Terra Indígena. A sentença foi suspensa somente em julho de 2020, pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).
Os conflitos envolvendo a demarcação da TI resultaram no assassinato do indígena Clodiodi Aquileu de Souza, em 2016, no episódio conhecido como Massacre de Caarapó. Na ocasião, cerca de 70 fazendeiros e pistoleiros encapuzados realizaram um ataque contra um grupo indígena acampado em uma fazenda que estava dentro da área identificada pela Funai como terra indígena. Além da morte de Clodiodi, outros seis indígenas ficaram feridos – cinco deles em estado grave.