Quilombolas lutam pela terra contra gigante do agronegócio e pedem o fim da violência no Pará

Por Catarina Barbosa
Do Brasil de Fato

No Pará, quilombolas da Comunidade da Balsa, no nordeste do estado, lutam desde 2016 pelo reconhecimento do seu território. Ao seu lado, estão as memórias que têm dos tempos em que moravam às margens do rio Acará e um estudo elaborado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), que realiza a cartografia social, com descrições realizadas pelas próprias pessoas da constituição do território, da afirmação das suas identidades políticas e dos conflitos socioambientais que ameaçam as suas vidas.

A titulação de territórios quilombolas é uma das formas de fazer valer o direito dessas pessoas. No entanto, no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), o processo atingiu a sua menor marca desde 2004, quando as regras atuais de certificação foram criadas.

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Esse trabalho desenvolvido pela UFPA difere da cartografia oficial, que ignora essas pessoas e suas histórias, já que, no mapa, elas sequer existem.

No entanto, como negar a existência e as memórias da Dona Maria Julieta da Conceição, de 94 anos? Ela e mais cinco irmãos nasceram em um braço do rio Acará chamado Turi-Açu, no nordeste do Pará. Nesse local, eles plantavam, caçavam e viviam suas vidas até o início da década de 80, quando foram expulsos pela empresa hoje chamada Agropalma, maior produtora de óleo de dendê da América Latina.

Entender o processo que levou Dona Julieta e cerca de 180 famílias a ficarem sem ter para onde ir é complexo. Ele perpassa o processo de colonização e exploração dos povos e comunidades tradicionais que habitam a Amazônia, além do processo de escravidão ou imobilização, termo utilizado para explicar o que nos dias atuais chamamos de “trabalho análogo à escravidão”.

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A família de Dona Maria Julieta é uma das muitas da localidade que trabalhou para a família de Antônio Maia, um português que controlava a região com a extração de madeiras de alto valor comercial, mediante a prática do aviamento – termo cunhado na Amazônia, que consiste em um adiantamento de mercadorias em troca de crédito e também do controle extralegal da força de trabalho negra e indígena.

A nonagenária Dona Maria, que carrega no rosto as marcas de muito trabalho na roça, mora hoje às margens da rodovia PA-256, local que habita há 62 anos, desde que foi expulsa das margens do Acará. 

A vida da senhora e das outras pessoas na região não era fácil, mas ela considera que era menos difícil. “Eu lembro que todos nós roçávamos: eu, minha mãe, meus irmãos. Era difícil? Era. Mas tínhamos o rio, conseguíamos caçar. Hoje, não pode mais caçar, é proibido, e toda comida precisa ser comprada, já o rio está mais escasso de peixe”, conta. 

O lugar onde a senhora mora atualmente, a Comunidade da Balsa, está ameaçado por uma obra anunciada pelo governo do estado do Pará, que visa atender ao agronegócio. No entanto, nem nos dias atuais, nem no passado, órgãos governamentais conversaram com Maria Julieta ou qualquer quilombola sobre seus direitos. 

São muitas as histórias que provam o direito dessas pessoas. Raimundo Serrão, de 60 anos, tem memórias diversas, da infância, do trabalho na roça, da pescaria, da família.

Seu pai tinha um terreno de quase 100 mil metros quadrados, mas ameaçado por pistoleiros que, segundo ele, tinham interesse em vender as terras posteriormente para a Agropalma, eles foi obrigado a largar tudo, até hoje vivendo em terrenos incertos. 

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Raimundo conta que um dia, ao retornar para casa, encontrou o local cheio de gente. A mãe disse a ele que o pai estava “teimando” com o fazendeiro. Ele não queria deixar a terra pelo valor de 100 cruzeiros.

Ele veio a descobrir que um “rapaz que ele sempre ajudava” era, na realidade, pistoleiro do fazendeiro. “Perguntei a ele o que estava fazendo ali. Ele disse que trabalhava para o Célio e que ele tentava fazer negócio com o meu pai. Se meu pai recusasse, a ordem era matar a família inteira, e ele estava ali para isso”. Simples assim.

Ao falar sobre esse dia, o homem caiu em choro. “Perguntei se ele teria coragem de matar meu pai, ele disse que não, por consideração a mim, e sugeriu que eu matasse o fazendeiro. Disse a ele que nunca tinha matado um homem e que não ia fazer isso”, recorda Raimundo.

Foi quando Lair, pistoleiro do fazendeiro de Célio, convenceu o patrão a deixar o homem pensar. Os próximos 15 dias foram de Raimundo convencendo a mãe e o pai a deixarem as terras, o que eles fizeram.

As saídas de Dona Julieta e Raimundo dos seus territórios, assim como das outras famílias que moravam às margens do rio Acará, foram todas feitas mediante ameaças, intimidações e coações, sendo que as coações que resultaram em venda das terras geraram negócios com preços irrisórios. Segundo os quilombolas, a empresa queria comprar as terras “limpas de gente”.

Essa disputa pelo território continua até os dias atuais.Desde que sua família foi expulsa das margens da PA-256, Dona Maria Julieta vive no local. Ela diz que antes o tráfego era de boi e madeira, hoje é de caminhões. – Créditos: Catarina Barbosa/Brasil de Fato×

Casa Natal 

O pesquisador Elielson Pereira, da Universidade Federal do Pará (UFPA), é um dos responsáveis pelo estudo intitulado Comunidade Balsas no território quilombola do Alto Acará e conflitos territoriais e ambientais com a empresa Agropalma S.A.

Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), Elielson explica que são muitos os indícios que comprovam que as terras foram tradicionalmente ocupadas pelos antepassados desses quilombolas.

“São evidências concretas que indicam a imobilização da força de trabalho negra desde o período colonial, ou seja, modalidades de trabalho compulsório, o que hoje é designado como trabalho análogo à escravidão. Nesse sentido, tudo girava no entorno da chamada “Casa Natal”. Nesse sentido, tudo girava ao entorno do que chamamos de “Casa Natal”, um local de propriedade da família Maia, no qual eles exerciam o controle político e o controle dos circuitos econômicos, mediante a exploração de madeiras nobres de alto valor comercial”. 

A família de Antônio Maia é uma das três famílias portuguesas que exploravam a região no início do século XIX. “Esse era o empreendimento colonial na área. Esse sistema repressor da força de trabalho perdurou até os anos 1970, sendo relatado, inclusive, por diversas pessoas que ouvimos no estudo”.

Segundo o pesquisador, o relatório elaborado pela Universidade Federal do Pará reúne extensa pesquisa historiográfica e antropológica sobre os quilombolas do Alto Acará:

“Conseguimos estabelecer conexões entre as formas de imobilização da força de trabalho inauguradas pela plantation colonial, que giravam em torno da “Casa Natal” até o final da década de 1970, com a extração de madeiras de lei, além dos violentos processos de desterritorialização em nome da “conservação ambiental”, desatados a partir da implantação de empreendimentos do agronegócio do dendê ocorrida desde a década de 1980, cuja expressão mais visível são os monocultivos de dendezeiros e unidades agroindustriais pertencentes à empresa Agropalma S.A”, pontua. 

Em 2018, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) chegou a fazer uma vistoria técnica no território quilombola, que resultou na elaboração de uma planta acompanhada de memorial descritivo, que indica 18.203 hectares correspondentes ao território etnicamente configurado.

No entanto, atualmente 71,8% desse território se encontra sobreposto por cadastros ambientais rurais da empresa de dendê, Agropalma.


Documento elaborado pela projeto Nova Cartografia Social da Amazônia mostra a sobreposição da Agropalma com o território quilombola/ Reprodução/Relatório da UFPA


Passados cinco anos, o processo nº 2016/330821 segue parado no Iterpa. Na última mesa quilombola, ocorrida em 10 de fevereiro de 2020, mediada pela Promotoria Agrária do Ministério Público Estadual, os dirigentes do órgão de terras informaram verbalmente que a equipe técnica “não encontrou quilombolas na área”, portanto, eles não fariam jus à titulação coletiva.

Segundo o pesquisador, a propriedade que a empresa goza sobre as áreas do território quilombola da Balsa é fraudulenta.

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As muitas memórias

Depois que o período colonial encerrou, essas pessoas continuaram nas terras que circundavam a “Casa Natal”, até a chegada de fazendeiros interessados em revender as terras para a Agropalma. “Quando meus pais eram vivos, antes de os fazendeiros chegarem, a gente morava na beira do rio. Aí depois que nos expulsaram e cada um teve que procurar o seu rumo”, lembra Raimundo, um dos quilombolas que integra a associação que luta para retornar ao local onde nasceu e cresceu.

A saída de Raimundo e sua família do local onde viviam às margens do rio Acará foi violenta. Eles deixaram para trás uma casa, suas plantações e um rio onde conseguiam pescar para morar em Belém do Pará, em uma casa que sequer tinha espaço para todos atarem uma rede:

“Nós fomos para Belém, e quando chegamos lá, meu pai comprou um barraquinho que dava 3X4 metros, que custou nessa época 50 cruzeiros, mas não tinha espaço para todo mundo atar a sua rede. Então, metade dormia no chão”. 

O fato narrado pelo homem ocorreu em 1975 e também ocorreu com a família de outro quilombola, Adilson Pimenta, que hoje também integra a associação, que luta pelo direito ao território onde nasceu e se criou. 

Em 2015, depois de serem impedidos, pela empresa, de utilizar o rio Acará, os remanescentes das margens do rio Acará fundaram a Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade da Balsa, Turi-açu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará (ARQVA) e desde 2016 eles lutam pelo reconhecimento do território. 

Ele diz ainda que há denúncias oferecidas pelo Ministério Público do Pará (MPPA), que conta com uma figura central no esquema de grilagem as terras: um homem contratado pela Agropalma, chamado Saulo Sales Figueira.

O homem era a pessoa encarregada de produzir mapas, esquentar a documentação fundiária nos cartórios e assediar as famílias a vender as terras a preços irrisórios, dizendo que não tinha outra saída. Caso a pessoa recusasse, a pistolagem entrava em ação. Segundo ele, era “aceitar ou morrer”: 

“A Agropalma contratou um senhor chamado Saulo para tirar os ribeirinhos da beira do rio, saiu seduzindo e enganando o povo com documento e um mapa dizendo que era o documento da terra, que não adiantava ficar, porque a terra já tinha sido negociada com a empresa e o comentário do povo é que a Agropalma só comprava do fazendeiro, se o fazendeiro conseguisse tirar o povo de dentro. E assim eles saíram enganando até que conseguiram tirar todo mundo”. 

O local citado por Adilson é, atualmente, utilizado pela Agropalma S.A .

 localizadas no município do Acará, que teriam sido adquiridas pela empresa Agropalma por meio registros falsos, realizados num cartório fictício da cidade.

O que diz a Agropalma?

Procurada pelo Brasil de Fato, a empresa disse, por meio de nota, que:

“A Agropalma está na região desde 1982, ou seja, há 39 anos. Todas as suas terras foram adquiridas de boa-fé, sendo a maior parte titularidade, correspondente a quase 80%, atribuída por títulos definitivos expedidos pelo Estado do Pará.

A propriedade e a posse são exercidas dentro do que estabelece a lei, tanto para o desenvolvimento de suas atividades econômicas quanto no que diz respeito às áreas de reserva florestal, todas devidamente licenciadas. As reservas florestais são preservadas e protegidas com recursos próprios da Agropalma contra a ação de caçadores, madeireiros e quaisquer outros danos ambientais, como o desmatamento ilegal, bastante comum nesta região do Estado”.

Já o Instituto de Terras do Pará e o governo do estado do Pará não se pronunciaram acerca das denúncias que constam na reportagem.

Edição: Vinícius Segalla

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