Por Franciléia Paula de Castro
Angela Davis em seu livro: Mulheres, Raça e Classe, descreve as décadas de 1960 e 1970 pela luta abolicionista nos Estados Unidos, e destaca o acesso à educação, terra e a representação política como tripé fundamental para garantir vida digna a população negra pós escravidão.
O Brasil, um país moldado pela exploração indígena e negra, até hoje priva estes grupos étnicoraciais do acesso à terra e território. Sem Terra e Alimento!
Apenas 13% do território brasileiro é ocupado por povos indígenas, e muitos ainda em processo de demarcação. Segundo a CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) das 3.200 comunidades quilombolas reconhecidas até então, menos de 7% delas estão regularizadas/tituladas.
Diante disso trago aqui o conceito do Racismo Fundiário pautado por Gomes Dias (2019), que descreve como a elevadíssima concentração de terras no Brasil tem cor, desde 1500.
Os dados inéditos obtidos a partir do Censo agropecuário (2017), trouxeram pela primeira vez a cor do proprietários dos estabelecimentos rurais no Brasil (IBGE,2020).
- Produtores pretos ou pardos se concentram em pequenos estabelecimentos, enquanto brancos são maioria conforme aumenta a área.
- Cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores declarados como brancos, proporção maior que a dos estabelecimentos com produtores que se declararam pardos, pretos e indígenas.
Nota-se como o processo de ocupação e apropriação do território brasileiro desde a invasão e colonização portuguesa passando pelo período escravocrata, apresentam reflexos até os dias atuais. Sobretudo ao analisarmos a exclusão e invasão de territórios por parte do Estado ao longo dos anos.
A exemplo da lei de terras (1850), a primeira tentativa de regulamentar o direito à propriedade por meio apenas da compra ou concessão de terras. Manteve a população negra privada do acesso à terra mesmo pós abolição, ao mesmo tempo garantindo mão de obra escrava nas fazendas e latifúndios.
A Marcha para Oeste lançada em 1938, como política pública do governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo a fim de desenvolver, ocupar e integrar as regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil que até aquele momento apresentavam uma “baixa densidade demográfica”.
E partindo da premissa que não existe terra vazia, o Racismo invisibilizou a existência de povos neste territórios.
Além da invasão das terras, o Estado age pela omissão e incentivo ao avanço do agronegócio sobre os territórios indígenas e quilombolas. Intencionalmente não faz reforma agrária que é fundamental para a redução das desigualdades sociais históricas no Brasil.
Dadas as circunstâncias da ocupação de terras e os conflitos agrários provocados pelo modelo capitalista de exploração de corpos e territórios indígenas e negros. Garantir acesso à terra e a produção de alimentos por esses grupos se torna uma estratégia antirracista.
A produção de alimentos nesses territórios, em sua maioria se baseiam na cultura alimentar de uma diversidade de povos, no manejo ecológico da terra e na conservação da biodiversidade. E foi a ciência produzida por esses povos que permitiu a sua sobrevivência ao longo da história.
Porém existe uma narrativa racista de rotular tudo que se produz nos territórios negros e indígenas como obsoleto e sem valor. Uma estratégia do capital agrário de diminuir a importância desses modos de vida e sua organização social.
Inúmeros conflitos e violências expulsaram o povo negro de seus territórios, produzindo ao longo dos séculos intensos êxodos para as cidades. Hoje a maioria da população negra se encontra nos centro urbanos, e novamente privada de direitos fundamentais como território, educação, trabalho, renda e consequentemente alimentação.
E para esse contingente de pessoas, o ato de comer está diretamente ligado as condições de acesso a alimentos em quantidade e qualidade para suprir as necessidades físicas e nutricionais, de forma a garantir saúde e vida. Porém no Brasil, tais condições não estão dadas de forma igualitárias a população.
As desigualdades sociais, o fator classe e raça determinam quem tem acesso a alimentação e sobretudo a alimentação saudável. Segundos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a insegurança alimentar atinge mais a população negra e com pouco estudo.
Portanto devemos considerar o racismo como um dos determinantes da fome no país.
Situação configurada como Nutricídio, descrito por Llaila O. Afrika como a destruição nutricional da raça negra, descreve como a má alimentação oriundas das mudanças em hábitos alimentares culturais, ou ausência do alimentos de qualidade tem levado a população negra no Mundo pós colonização ao adoecimento e morte.
Dra. Carolina Maria de Jesus escreveu em seu livro “Quarto de despejo” a cor da fome é amarela, talvez ela referia a cor da fome por dentro, por fora a cor da fome no Brasil é preta.
Os recentes dados publicados sobre a Insegurança Alimentar durante a pandemia, revelaram que 19 milhões de pessoas passaram fome no Brasil no fim de 2020. E os domicílios em que a pessoa responsável é uma mulher apresentaram insegurança alimentar grave. E se essa pessoa responsável for uma mulher, de cor preta ou parda e de baixa escolaridade, essa insegurança é ainda maior (Rede PENSSAN,2021).
Portanto é urgente pautarmos a democratização da alimentação saudável. A falta de incentivos governamentais como políticas públicas de apoio a sistemas alimentares saudáveis, cria nichos de mercados e torna o alimento de qualidade inacessível para boa parte da população.
Comer bem acaba se tornando um privilégio de grupos sociais consumidores, em sua maioria brancos de classe média e alta.
Reafirmo que comer precisa ser um ato antirracista, direito que deve ser assegurado a todos e todas!
As soluções para erradicação da fome precisam ser emergenciais, mas aliadas as lutas para o acesso a direitos fundamentais como o à terra, moradia, educação, trabalho e renda. Que possam garantir condições dignas e de sobrevivência a população negra no Brasil.
*Engenheira Agrônoma/Mestra em Saúde Pública
Edição Especial – 13 de maio de 2021.
Referências Consultadas
AFRIKA, Llaila. Nutritional Destruction of Black People: Nutricide. Pennsylvania: EWorld; 2013.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Candiani, Heci Regina. São Paulo: Boitempo, 2016. 244pp.
GOMES DIAS, Tatiana Emília. Racismo fundiário: a elevadíssima concentração de terras no Brasil tem cor. 2019. Disponível em https://cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/artigos/4669-racismo-fundiario-a-elevadissima-concentracao-de-terras-no-brasil-tem-cor
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O Atlas do espaço rural brasileiro, publicado em 2020. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101773
JESUS, Carolina. Quarto de despejo. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
REDE PENSSAN. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Publicado em 2021. Disponível em http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Insguranca_alimentar.pdf