Por Fernanda Santana
Do Correio da Bahia
Mãe e filho, Gal* e José*, comem o que se produz na vizinhança, exceto a cebola e o tomate, desde que pararam num hospital com falta de ar e tosse, em abril. Não era coronavírus. Eles, uma das 70 famílias da comunidade quilombola de Velame, em Morro do Chapéu, Chapada Diamantina, denunciam contaminação pelos agrotóxicos usados nas plantações que os cercam. Depois de uma fiscalização, ficou constatado um “surto” na localidade. O quilombo está na região de Jacobina, uma das principais produtoras agrícolas da Bahia, onde também foi identificado “excesso de agrotóxico”. O veneno pode chegar até aqui, em Salvador.
O quintal de Gal, nome fictício, fica a menos de 500 metros das duas produtoras agrícolas vizinhas, no local desde 2015. Ela e o filho foram até o Hospital Municipal de América Dourada, cidade a 30 quilômetros de distância, naquela tarde de abril. “Passei mal e até hoje sinto”, conta Gal. No horizonte, uma “nuvem branca”, “com cheiro forte”, força os nativos a fecharem as janelas.
Os sintomas – entre os quais dores de cabeça e diarreia -, sem doença aparente, começaram a se alastrar até que um nativo soube, pela rádio, da presença de uma força-tarefa capitaneada pelo Ministério Público da Bahia (MP) – a 44ª Fiscalização Preventina Integrada (FPI) – para fiscalizar o uso de aditivos em fazendas, em fevereiro de 2019. Decidiu chamá-los.
Os fiscais foram chamados a Velame e constataram “irregularidades que afetam o meio ambiente e a coletividade” nas plantações vizinhas de cebola e tomate. O relatório foi divulgado em fevereiro deste ano. No mês seguinte, a Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) visitou a comunidade. A Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab) acompanhou.
A constatação, confirmou a Sesab à reportagem, é de que há um “surto”, crescimento atípico do número de casos de uma doença, num determinado local em um período de tempo reduzido. Foram encontrados 18 casos de pessoas intoxicadas por agrotóxico. Numa comunidade onde moram 220 pessoas, é o equivalente a dizer que um em cada oito habitantes, em média, estivesse intoxicado.
“É uma situação preocupante”, classifica Ruy Muricy, técnico de Vigilância em Saúde Ambiental da Sesab, que participou da ação e acompanha o caso.
A pandemia da covid-19 atrapalhou os prazos e, até agora, os relatórios finais da Sesab e da Adab não foram concluídos.
A exposição ao agrotóxico pode levar a problemas agudos – como os de Gal e José – e disfunções crônicas, como danos ao pulmão, ao sistema nervoso e endocrinológico, explica Vilma Santana, coordenadora do Programa Integrado da Saúde Ambiental e do Trabalhador, da Universidade Federal da Bahia.
O aparecimento de problemas varia, sobretudo, conforme a frequência de exposição, a proteção, toxicidade do aditivo e as características das pessoas expostas – crianças e lactentes (aquelas que ainda mamam), gestantes, idosos e pessoas com problemas de saúde são considerados do grupo de risco. A evolução de casos graves também pode levar a morte.
Segundo o Instituto Nacional de Câncer, a exposição ao agrotóxico também tem sido associada a incidência de casos da doença. A evolução de casos graves também pode levar a morte.
“Os agrotóxicos são um conjunto de combinações químicas. O efeito pode passar por gerações, de má formação congênita [defeito na constituição de algum órgão ou conjunto de órgãos], porque afeta a produção hormonal”, explica Vilma.
Durante a pandemia de um vírus que ataca diferentes partes do corpo, é uma preocupação a mais.
Veneno em dobro
As lavouras de cebola e tomate dos vizinhos estão entre 500 metros e um quilômetro de distância. Em média, de 30 a 40 nativos de Velame saem da comunidade diariamente para trabalhar nas plantações, o que os expõem ainda mais. Não há uma regulamentação sobre a distância entre plantações com agrotóxico e residências.
“Eles estão expostos ao agrotóxico, muitas vezes, sem a proteção necessária. As empresas também armazenam inadequadamente o agrotóxico, há produto vencido, o que aumenta o perigo”, elenca Celso Teodoro, coordenador de Vigilância, de Ambientes e Processos de Trabalho da Vigilância Sanitária do Estado.
Ele lembra de sentir “um cheiro forte” ao desembarcar em Velame. O colega, naquele dia, sentiu o mesmo odor. “Um cheiro forte, aquele cheiro de produto químico, sabe?”, define Celso.
O gerente da Fazenda Nova Velame 3, Eberton Oliveira, onde está a Cebolas Romero, uma das empresas, defende que “não há uso excessivo de agrotóxico, há acompanhamento de agrônomos e se houvesse erro, seria um veneno para a plantação, o que seria prejudicial para nós”. Na fiscalização do ano passado, foram encontradas, em valas cavadas no solo, embalagens queimadas de agrotóxico. Sobre as irregularidades, como agrotóxico vencido e falta de equipamento de proteção para os funcionários, ele diz que “estão ajustando”.
Também entramos em contato com o proprietário da outra fazenda, a Nova Velame, Antônio Augusto Dourado. Ele disse que a produção no local é “feita dentro da legalidade”, com agrônomos. “Em relação a ajeitar a alguns problemas que foram encontrados, a gente está trabalhando para isso. Às vezes os funcionários relaxam um pouco, mas a gente trabalha adequadamente. Não entendo essa questão quilombola. Há um pessoal que está julgando sem saber, a gente até gera emprego na região”, diz.
A produção da Nova Velame está parada, para iniciar um novo ciclo, provavelmente no próximo mês. A da Cebolas Romero permanece. O CORREIO não conseguiu confirmar se as duas fazendas, que escoam produtos para todo Nordeste e até São Paulo estão entre as maiores produtoras do estado – o dado é protegido por sigilo.
Os defensivos agrícolas, como também são chamados os agrotóxicos, não são proibidos no Brasil. Hoje, 2.246 deles estão registrados no Ministério da Agricultura. Na cebola e tomate, entre os mais comuns, estão o pirate, produzido pela Basf [confira ao final da reportagem o posicionamento da empresa], e delegate, produzido pela Corteva, que, em excesso, afetam o sistema nervoso, por exemplo. A Adab não informou quantos desses produtos foram registrados em receituários, o que poderia dar uma pista do uso no estado.
Há regras específicas para uso de agrotóxico em cada cultura e ambiente (Foto:Arquivo CORREIO) |
A quantidade de agrotóxico utilizado depende da praga, da plantação, da bula e das recomendações do agrônomo, explica Raimundo Ribeiro, coordenador de Fiscalização da Adab, responsável por emitir os receituários agronômicos teoricamente necessários para compra de agrotóxico e fiscalizar o uso.
Quando são respeitados a dosagem, o momento ideal de aplicação – condições meteorológicas como vento entre 6 e 7 quilômetros por hora – e equipamentos ideais de pulverização, os agrotóxicos cumprem suas funções de matar pragas, por exemplo, sem excesso. Quando não, os riscos não ficam restritos aos seres humanos, mas se estendem à biodiversidade. Recentemente, pesquisas têm associado a mortandade de abelhas, fundamentais para os cultivos agrícolas ao realizar a polinização das plantas, à contaminação por agrotóxico.
Salvador na rota do agrotóxico
O anúncio ouvido na rádio pelo nativo de Velame falava da presença do MP naquelas cidades, para fiscalizar propriedades da microrregião de Jacobina, uma das principais produtoras agrícolas da Bahia, ao norte da Chapada Diamantina. No relatório finalizado neste ano, o órgão comprovou “uso excessivo” de agrotóxico em “culturas de morango, uva, banana, tomate, cebola, milho, pimentão, maracujá e pastagem”.
Os nove municípios da região – além de Jacobina, Campo Formoso, Jaguari, Miguel Calmon, Mirangaba, Ourolândia, Umburanas, Várzea Nova e Morro do Chapéu – produziram 13,54% do tomate (35 toneladas) e 4% da cebola (8,7 toneladas) do estado em 2018, diz a Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura da Bahia (Seagri). Morro do Chapéu, sozinha, é a maior produtora de morangos do estado – ano passado, produziu 1,2 tonelada da fruta. As culturas de morango ficam a uma distância de, pelo menos, 10 quilômetros de Velame, segundo um produtor nativo da comunidade quilombola.
A produção agrícola na região é escoada para Salvador, cidades do interior, capitais do Nordeste e até São Paulo. A Bahia é o segundo maior produtor nacional de cebola – 220,6 mil toneladas em 2018 -, atrás de Santa Catarina. O estado também é o quarto maior produtor do país de tomate, com 275,8 toneladas anuais.
Dos 10 agrotóxicos mais pulverizados em Jacobina, metade é extremamente tóxica – segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – e a outra metade “muito perigosa ao meio ambiente”. O clorpirifos utilizado nas plantações locais, um dos aditivos, é extremamente tóxico e pode afetar o sistema nervoso, levar a convulsões e irritações graves no olho.
Agrotóxicos têm diferentes graus de toxicidade (Foto: Arquivo CORREIO) |
Os achados colocaram Jacobina na lista de preocupações quanto ao uso de aditivos. Até então, despertavam a atenção principalmente áreas como o Oeste e o Sudoeste da Bahia, onde o agronegócio está plenamente estabelecido, explica Letícia Nobre, diretora de Vigilância e Atenção à Saúde do Trabalhador, da Sesab.
A Federação da Agricultura e Pecuária da Bahia disse que não comentaria a questão em Velame, nem Jacobina, pois não é responsável por vistoriar uso de agrotóxico. A Associação Nacional de Produtores de Cebola (Anace) respondeu estar ciente do caso, mas que também não falaria a respeito.
Os problemas foram relatados ao superintendente da Seagri, Adriano Bouzas. Ele caracterizou o local como “muito importante para a Bahia” e que o caso “é uma preocupação”.
“O grande problema da utilização do agrotóxico é o que o diferencia entre veneno e remédio. Não é da nossa alçada fiscalizar isso, e também não temos acesso às informações de como está o uso lá. Mas é uma preocupação”, conta.
O relatório do MP também mostrou que a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) não monitora a presença de dois agrotóxicos – mancozebe (altamente tóxico) e permetrina (extremamente tóxico) – na água da região de Jacobina. A Embasa diz estar “em processo de compra de equipamentos”. Também foram emitidas recomendações, como fortalecimento das fiscalizações do uso de agrotóxicos, mas nada mudou.
“Com certeza a quantidade de agrotóxico que é usado é ainda muito maior do que desconfiamos. É preciso fortalecer as fiscalizações e notificar corretamente casos de intoxicados”, comenta o promotor Pablo Almeida, da Promotoria Regional Ambiental de Jacobina.
A reportagem tentou contato com as prefeituras das nove cidades. Queríamos saber como é o acompanhamento do uso de agrotóxicos no território e um posicionamento sobre o impacto na população. Somente Ourolândia e Várzea Nova responderam. A primeira disse não estar ciente da situação; a segunda reforçou a responsabilidade da Adab.
Não existe nenhum programa nacional, nem estadual, de taxação de fabricação e venda de agrotóxico. O governador Rui Costa (PT) apresentou uma proposta de tributação à Assembleia Legislativa da Bahia, no ano passado. A Casa arquivou o pedido.
Monitoramento de produtos e da qualidade da água está interrompido
O estado não possui programa de fiscalização sistemática dos resíduos tóxicos nos alimentos. Apenas o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), que coleta semanalmente alimentos em supermercados de cinco cidades – entre elas Salvador, mas a região de Jacobina não está incluída – e a Vigiagua, que analisa, quadrimestralmente, agrotóxicos nos sistemas de abastecimento hídrico.
Pedimos acesso aos dados monitorados, mas a Sesab informou que as coletas em 53 municípios baianos ainda não foram feitas em 2020 e que o Para também foi interrompido, devido à pandemia.Por isso, não é possível saber o quanto de agrotóxico ingerimos. Há, no entanto, indícios.
Numa análise nacional realizada em 2019, a Anvisa mostrou que 23% dos alimentos tinham mais resíduos tóxicos que o permitido. Os limites variam conforme a cultura e o aditivo. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) estima que o brasileiro consome, por ano, sete litros de agrotóxico. Seria como, diariamente, encher uma colher de sopa de veneno e beber, como se alimento fosse.
Sem fiscalização
Os agrotóxicos agrícolas intoxicaram 254 baianos em 2019 e 75 neste ano, mostra dados tabulados pelo CORREIO no Datasus, do Ministério de Saúde. Nesses dois anos, 16 pessoas morreram na Bahia, vítimas dessa contaminação. É o segundo maior número do país, atrás apenas de Pernambuco, com 42 óbitos.
Nos últimos 10 anos, foram 5.795 pessoas intoxicadas por agrotóxicos no estado – inclusos agrotóxicos agrícolas, domésticos, como venenos contra baratas, e de saúde pública, contra vetores de doenças, como o Aedes aegypti, que possuem princípios similares aos usados em plantações. O estado ocupa a décima posição no ranking das populações mais envenadas por agrotóxico. O primeiro é o Paraná, com 9,3 contaminados desde 2010.
Até julho deste ano, os moradores da microrregião foram os mais afetados pelo agrotóxico. Há 22 casos notificados de intoxicação, uma média de 5,4 notificações por 100 mil habitantes. Esse índice é quase três vezes maior que a média estadual, com dois casos a cada 100 mil habitantes. Além do mais, as estatísticas passam por alterações depois de computadas e podem ser ainda maiores. O Núcleo Regional de Saúde não comentou a situação. A Sesab reforçou os riscos da exposição ao agrotóxico – como tem se visto em Velame.
Fiscalização de depósito com agrotóxicos (Foto: Divulgação/MP-BA) |
Para cada registro, o ministério estima que existam outros 50. Ou seja, 75 podem indicar, na verdade, 3,7 mil envenenamentos. Agora, o problema ganha outra gravidade. Desde o início do ano, o número de fiscalizações nas produções caiu, pelo menos, três vezes. Significa que milhares de regiões deixam de ser fiscalizadas.
Em 2019, foram 2.868 fiscalizações. Neste ano, 510. Se o ritmo continuar o mesmo, serão 874 fiscalizações em 2020. O possível resultado? Mais pulverização de agrotóxico, mais risco à saúde. A redução se deve, diz a Adab, à pandemia.
Enquanto isso, a produção agropecuária segue a pleno vapor. Ainda não há dados sobre a produção baiana neste trimestre, em comparação a 2019. Mas, prevê o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o setor agropecuário brasileiro deve ter alta de 2,5% em 2020. Os possíveis impactos disso na saúde pública, por outro lado, não são calculados.
Empresa diz que agrotóxico é seguro
Por meio de nota, a Basf, que produz o pirate – um dos insumos químicos usados por produtores rurais na Chapada Diamantina -, afirma que o agrotóxico é seguro “desde que utilizadas seguindo as boas práticas agrícolas e as recomendações descritas em bula”.
Informou ainda que disponibiliza “programas de boas práticas e treinamentos baseados, por exemplo, na conscientização da segurança do agricultor, no uso seguro, responsável e sustentável de defensivos agrícolas, incluindo o armazenamento adequado, o descarte de recipientes vazios e a disponibilidade e o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs)”.
Confira abaixo a nota da empresa na íntegra:
“As soluções da Basf são seguras para os seres humanos, animais e meio ambiente, desde que utilizadas seguindo as boas práticas agrícolas e as recomendações descritas em bula.
A Basf leva muito a sério seu compromisso com as boas práticas agrícolas responsáveis. Nossos produtos no mercado são acompanhados por programas de boas práticas e treinamentos baseados, por exemplo, na conscientização da segurança do agricultor, no uso seguro, responsável e sustentável de defensivos agrícolas, incluindo o armazenamento adequado, o descarte de recipientes vazios e a disponibilidade e o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs).
A Basf realiza o Programa EPI, no Brasil, há 20 anos para que os agricultores tenham acesso a estes equipamentos. Os números mostram a importância da iniciativa: já são mais de 1,3 milhão de kits comercializados. O Programa EPI é uma iniciativa de responsabilidade social para aumentar a oferta e o uso de equipamentos de proteção individual para a aplicação de defensivos agrícolas. Além da comercialização de kits de EPI, a Basf realiza ações educativas e de comunicação para conscientizar o uso correto dos equipamentos para proteger a saúde dos aplicadores. Em média, são 35.000 mil pessoas treinadas por ano no Brasil. Em duas décadas, estima-se que mais de 700.000 mil pessoas receberam treinamentos da Basf”.
*Os nomes verdadeiros foram preservados a pedido dos entrevistados.