Por Hélen Freitas
Da Agência Pública/Repórter Brasil
“Depois que esse avião passou por cima das nossas casas, estamos adoecendo. Então a gente tá pedindo ajuda, a gente tá pedindo socorro”. Três meses após ser uma das vítimas atingidas por agrotóxicos lançados de avião sobre Araçá, comunidade rural no Maranhão, Antônia Peres relata sintomas de intoxicação. Como ela e seu filho de sete anos, outros moradores têm dor de cabeça, tontura, fraqueza, falta de ar e coceira recorrentes desde o episódio, em 19 e 22 de abril. Até hoje eles não receberam tratamento para a intoxicação.
Vídeos feitos pelos moradores registram o avião passando diversas vezes sobre as casas e revelam o corpo do filho de Antônia cheio de manchas e feridas. O episódio, revelado em matéria da Repórter Brasil e Agência Pública, faz parte de uma disputa por terra entre sojeiros e as comunidades de Araçá e Carranca, ambas no município de Buriti. Moradores relataram terem recebido ameaças de envenenamento caso não deixassem o local.
Apesar da gravidade das denúncias, as investigações da Polícia Civil e das secretarias estaduais da Saúde e do Meio Ambiente andam a passos lentos. Até agora, nenhum morador recebeu os resultados dos testes colhidos na comunidade. Mas o presidente da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja) do Maranhão garante que já sabe o que dizem os laudos.
“Todos os exames realizados, toda a perícia que foi pra lá, 100%, tirou todas as dúvidas. Nada aconteceu que venha ter causado qualquer tipo de coceira, qualquer tipo de desconforto pra alguém”, afirma Vilson Ambrozi, presidente da associação no estado.
“A comunidade inteira se coçava por escabiose”, afirma o representante dos sojeiros, referindo-se à doença conhecida como sarna humana. Segundo ele, os laudos mostram que não houve intoxicação por agrotóxicos e que a sarna é a origem dos problemas de saúde dos moradores. “Se você olhar a foto do menino [criança que aparece no vídeo acima] e mostrar pro médico, na foto ele já identifica escabiose. Porque no meio dos dedos, embaixo das axilas, é impossível. Não tem inseticida no mundo, nem se fosse o agente laranja. Mas escabiose faz, então foi escabiose”.
“Estamos adoecendo”, diz Antônia Peres. Seu filho, que ficou com feridas na pele, correu atrás do avião que sobrevoou a comunidade
A médica sanitarista Lilimar Mori, que tem ampla experiência no cuidado de populações atingidas por agrotóxicos no Paraná, analisou os vídeos da criança e os classificou como inconclusivos. “Olhando o vídeo não dá pra dizer. Pode ser uma irritação pela substância química. A substância química pode fazer uma lesão, uma infecção em cima disso, ou por uma bactéria”.
Até agora não se sabe se todos os problemas de saúde diagnosticados nas comunidades são decorrentes da aplicação de agrotóxicos. Durante a visita realizada no início de maio, um infectologista e um clínico enviados pelo governo do estado constataram que alguns atingidos estavam com uma infecção derivada da escabiose. A doença gera bolhas que, quando coçadas, tornam-se feridas na pele.
A origem da escabiose não tem relação com os agrotóxicos, mas o quadro pode se agravar se houver a interação com produtos químicos. “Você pode ter escabiose, e pode ter lesão pelo ácaro, mas você pode estar momentaneamente em contato com agrotóxico e também ter lesão de pele, irritação de pele pela substância química. Daí você tem duas coisas juntas, pior ainda”, afirma a médica sanitarista.
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O presidente da associação de moradores de Araçá, Edimilson Silva de Lima, garante que as coceiras apareceram somente após o “banho de agrotóxicos”.
Testes atrasados podem gerar falso negativos
Uma das preocupações de médicos e pesquisadores que monitoram casos como esse é o curto período em que devem ser feitos os testes para detectar os químicos no corpo das vítimas. “Dependendo do agrotóxico, em 72h ele é eliminado do organismo e você nunca vai ter essa evidência”, afirma a médica sanitarista Lilimar Mori.
É preciso que os serviços públicos sejam ágeis, o oposto do que aconteceu em Buriti. As equipes de saúde chegaram duas semanas depois do primeiro boletim de ocorrência.
“Quando surgiram essas denúncias, a equipe foi logo imediatamente, mas esse tempo já ultrapassava, não havia a possibilidade de fazer a coleta pra determinar se havia ou não a contaminação por agrotóxico”, lamenta Jakeline Maria Trinta Rios, coordenadora do Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde. “Por isso só foi realizada coleta em duas pessoas que realmente tinham algum indício de que pudesse ser agrotóxico”.
Segundo Edmilson Diniz, superintendente da Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde do Maranhão, a equipe encontrou um adolescente e uma criança com “eventuais queimaduras químicas”.
Exames de sangue foram colhidos na delegacia, para o inquérito policial, mas foram realizados no período de uma semana a um mês depois do incidente.
Testes feitos com tanto atraso podem gerar o resultado conhecido como falso negativo, algo que é de interesse dos investigados. “Passou três dias, esqueça, não vai ter nunca essa prova, então essa morosidade pode ser proposital também”, alerta a sanitarista Lilimar Mori.
O mais grave é que, enquanto não saem esses resultados, os moradores não estão recebendo acompanhamento para intoxicação.
“Não tem um antídoto para agroquímicos, o que nós fazemos é a manutenção da vida”, alerta Solange Garcia, professora e cientista da área de toxicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Por isso, ela afirma, as vítimas precisam de acompanhamento periódico, com exames hepáticos, renais, dermatológicos e neurológicos. O que não está acontecendo.
Em maio, a Justiça determinou que a família Introvini pagasse uma equipe médica para prestar assistência às vítimas durante um mês. De acordo com o advogado do fazendeiro, arcar com os médicos foi uma opção do fazendeiro, antes de receber a decisão judicial. Segundo relatos da comunidade, a equipe do fazendeiro apenas coletou relatos, não solicitou exames, nem recomendou tratamento.
Lobby nacional da soja
Até agora, as autuações recebidas pelos investigados não correspondem à gravidade das denúncias. O sojeiro Gabriel Introvini, dono da Fazenda São Bernardo, recebeu multa da Secretaria do Meio Ambiente por falta de licença ambiental para pulverizar. A empresa aérea Flórida Aviação Agrícola foi autuada por falta de registro. E Sergio Strobel, proprietário da Fazenda Europa, outro sojeiro investigado, não recebeu advertência.
Mas houve uma decisão que incomodou as categorias dos produtores de soja e donos de aviões agrícolas como um todo. Diante dos fatos denunciados por moradores, o juiz da Vara Única de Buriti, Galtieri Mendes de Arruda, proibiu toda a pulverização aérea e terrestre no município de Buriti até que fosse apresentada a licença ambiental, entre outros documentos.
A proibição é inédita no Maranhão e caiu como uma bomba para a campanha em defesa da prática, promovida pelo agronegócio em âmbito federal. Casos como o de Buriti estão pipocando pelo país e são vistos pelos sojeiros como perigosos precedentes para o debate nacional.
O estado do Ceará e algumas cidades pelo país conseguiram aprovar leis proibindo o uso do avião na aplicação de agrotóxicos. E há Projetos de Lei tramitando em diversos municípios. Mesmo com críticas de pesquisadores e denúncias de comunidades rurais, a prática é defendida pelo agronegócio em âmbito nacional. Para derrubar a proibição nos poucos locais que conseguiram banir a pulverização aérea, alguns gigantes do setor agrícola e de transporte aéreo estão recorrendo ao Supremo Tribunal Federal.
“Se tem uma decisão judicial proibindo a pulverização, a tendência é que essas associações reajam porque as liminares podem se multiplicar”, afirma Luis Fernando Cabral Barreto Junior, promotor de justiça de proteção do meio ambiente do Ministério Público do Estado Maranhão.
O presidente da Aprosoja no Maranhão disse estar confiante que o resultado da investigação conduzida pelo governo do Maranhão será favorável aos sojeiros. “Pode ter certeza que todos os laudos já estão com o nosso governador [Flávio Dino / PSB], que por incrível que pareça é do partido comunista. E ele particularmente está cobrando os órgãos do Estado que vieram aqui”.
Não é difícil estimar o poder do lobby da soja sobre as decisões de algumas pastas do estado. Os investigados pela polícia e o atual secretário da Agricultura, Pecuária e Pesca do Maranhão foram integrantes de cargos de comando da Aprosoja no mesmo mandato. No final de 2018, Sérgio Strobel foi eleito para a vice-presidência e André Introvini (filho e sócio do investigado, Gabriel Introvini) para o cargo de tesoureiro da associação. Na mesma eleição, Sérgio Delmiro, atual secretário estadual da agricultura, foi eleito para o cargo de secretário executivo da Aprosoja no Maranhão – posição que, por telefone com a reportagem, ele afirmou não ocupar mais.
Agrotóxicos aplicados geram sintomas relatados
A reportagem investigou os produtos aplicados naqueles dias pelo avião flagrado voando sobre as comunidades e descobriu que seus efeitos batem com os sintomas apresentados pelos moradores.
Segundo a classificação da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, os produtos investigados são de baixa toxicidade. Mas essa avaliação toxicológica é feita dentro de um cenário em que se respeita as normas de proteção, como o uso de máscaras e luvas. Realidade distante do episódio em Buriti. A criança com as piores marcas no corpo correu atrás do avião, que voava em altura baixa.
Segundo a Secretaria do Meio Ambiente, o relatório do plano de voo da empresa Flórida registra os fertilizantes Supa Moly Co Mo e Broadacre Mn+, fabricados pela Agrichem. Por meio de seu advogado, Introvini confirmou o uso dos dois fertilizantes.
As bulas indicam que eles podem causar efeitos perigosos à saúde humana se não forem usados com luva, máscara, óculos de segurança e macacão com mangas compridas impermeáveis. Entre elas: sensibilização e irritação de pele, irritação respiratória, danos ao sistema nervoso central, estômago e coração.
Estes fertilizantes contêm substâncias que, em altas concentrações, podem gerar diversos efeitos toxicológicos, afirma a toxicologista Solange Garcia. Entre elas, estão o cobalto, o molibdênio e o manganês. Os efeitos podem ir muito além de queimaduras no corpo. Pesquisas realizadas com crianças no Rio Grande do Sul apontam que a exposição ao manganês pode causar disfunção endócrina, especialmente na tiróide, além de alteração nos níveis de gorduras e de glicemia no sangue, função neuropsicológica, renal e deficiências cognitivas.
Fotos obtidas com exclusividade pela Repórter Brasil e Agência Pública revelam outros três produtos agroquímicos encontrados na fazenda de Introvini. Entre eles, o inseticida Cruiser 350FS e o fungicida Priori Xtra, fabricados pela Syngenta. Agrotóxicos presentes nestes produtos podem provocar irritação dos olhos e da pele, efeitos no fígado, sobre o desenvolvimento, saúde reprodutiva, trato respiratório e sistema endócrino. (leia aqui as descrições completas e fontes consultadas).
Eles apresentam, ainda, toxicidade elevada para o meio ambiente, podendo matar aves, abelhas e animais marinhos, além de permanecer no solo por longos períodos.
“Em teoria, nenhuma dessas substâncias poderiam ser aplicadas por pulverização aérea, porque elas têm em suas próprias bulas cuidados extremos com EPIs (Equipamento de Proteção Individual) para evitar que a pessoa se contamine. É um contrassenso você fazer uma aplicação aérea quando a bula diz que é necessário EPI”, afirma Garcia. Embora o Brasil permita a pulverização aérea de fertilizantes, as aplicações devem ser feitas a uma distância mínima de 500 metros de cidades ou comunidades rurais, de modo a não atingir pessoas.
Fazendeiro nega acusações
A investigação anda a passos lentos.O Instituto de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do estado informou que estão sendo realizados os exames que irão determinar se o solo, água e população foram contaminados, “mas devido ao grande volume de amostras, o mesmo teve sua conclusão prorrogada em 60 dias”. Também houve um pedido de mais 90 dias para a conclusão do inquérito policial.
O promotor do Ministério Público do Estado Laécio Ramos do Vale afirma que o procedimento está em apuração. ”Se foi em cima, se a distância que aplicou estava correta, se foi o vento que levou, tudo está sendo apurado”. Ainda segundo ele, a Defensoria Pública do estado irá realizar uma audiência de acordo com Introvini em agosto. A defensoria busca que o fazendeiro pague uma indenização aos moradores.
O advogado do fazendeiro nega que seu cliente seja o responsável pelas intoxicações em Carranca e Araçá. “Contratamos vários profissionais, advogados, médicos, outros profissionais da saúde e agrônomo e apresentamos provas de que não somos os responsáveis pelas acusações noticiadas”. O advogado ainda disse que o fazendeiro prestou esclarecimentos à delegacia e apresentou um relatório de aplicação, que indicaria que os agrotóxicos foram aplicados a mais de 6 quilômetros de Araçá. Em relação às denúncias da comunidade de Carranca, informou que está sendo perseguido pelos moradores e que não foi constatada nenhuma infração. Confira a resposta do sojicultor na íntegra.
A reportagem também entrou em contato com o sojicultor Sérgio Strobel, mas não tivemos retorno. Também contatamos a empresa Safras e Cifras – apresentada na Receita Federal como seu contato financeiro -, porém a empresa informou que não faz assistência técnica ou jurídica da Fazenda Europa. Por fim, solicitamos à Aprosoja Maranhão o contato do fazendeiro, já que Strobel é integrante da associação, mas não tivemos retorno.
Também tentamos contato com a Flórida Aviação Agrícola por telefone e e-mail, tendo 5 dias para responder aos questionamentos enviados, mas não tivemos respostas.
Em defesa dos sojeiros e da empresa de aviação, o presidente da Aprosoja no Maranhão afirma que o avião estava fazendo um balão quando foi filmado sobre a comunidade. Segundo ele, quando o GPS da aeronave identifica que acabou a lavoura, ele desliga automaticamente o mecanismo que aplica os agrotóxicos. “Por isso, não teve resíduo nenhum de produto químico nem sobre a comunidade, nem sobre as árvores próximas. Foi isso que aconteceu, e os laudos estão saindo”.
Por fim, Ambrozi ameaçou a equipe da reportagem de processo caso a Repórter Brasil e a Agência Pública continuem repercutindo os fatos. “Tenha cuidado na hora de repercutir uma coisa, você pode ser levado na pessoa física. Porque nós não vamos procurar site, nós vamos procurar quem assinou”, disse. “Nós vamos chamar aqui pra região, pra Justiça daqui provavelmente, para prestar esclarecimento quem postou. É o CPF”.