Por Leomar Daroncho
Da Rede Brasil Atual
Na “Carta a el-Rei Dom Manoel sobre o achamento do Brasil”, em 1500, o escrivão Pero Vaz de Caminha narra os potenciais da nova terra e as aventuras e desventuras dos 1.500 intrépidos e ambiciosos portugueses que compuseram a maior expedição marítima que já se tinha organizado, financiada por bancos de Florença e mercadores.
O francês Jean de Léry também registrou detalhes das pioneiras travessias do Atlântico. Além das dificuldades técnicas da navegação, questões vitais como a organização, o armazenamento e a conservação de alimentos, ao longo dos 44 dias da jornada, constituíam um enorme desafio.
Passados cinco séculos do achamento de Cabral, vivemos o ritmo alucinante da liberação de novos venenos no Brasil, na sequência da “Revolução Verde”. A expressão designa as transformações na produção agropecuária, iniciada no final do século 20, marcada pela mecanização e utilização de produtos químicos, inseticidas, herbicidas e sementes transgênicas.
Entre o dia 23 de julho e 19 de agosto de 2021, foram autorizados mais 99 produtos. Dentre eles o herbicida Dicamba, considerado “produto muito perigoso ao meio ambiente” e proibido pela Justiça dos EUA[i].
Agriculura brasileira
A preocupação com os prejuízos aos produtores e a óbvia mácula à imagem da agricultura brasileira no exterior levaram a Associação de Produtores de Soja a emitir um alerta: “Caso opte por utilizar tanto as sementes transgênicas quanto o herbicida Dicamba, o produtor precisa entender que ele estará por sua conta e risco e que poderá ter problemas, mesmo que adote todas as recomendações de bula”[ii].
Noutra oportunidade registramos os riscos estratégicos da nossa tolerância ao veneno. Há sinais claros de danos à economia brasileira na acirrada disputa por mercados seletivos[iii].
A liberação do Dicamba demonstra que, com exceção dos mal informados e da indústria química, não há adversários à pauta civilizatória de redução dos agrotóxicos.
Hoje, estão em comercialização no Brasil 3.424 agrotóxicos. Os anos de 2019 e 2020 estão marcados por recordes na aprovação de biocidas, sendo que um terço deles é proibido na União Europeia em razão dos riscos à saúde e ao meio ambiente[iv].
Nos 32 meses do atual Governo foram concedidos 1.358 registros, em muitos casos dando sobrevida, aqui, a venenos condenados nos países de origem. Como observou a Agrônoma Sonia Corina Hess (UFSC) há “moléculas muito antigas, que correspondem a 70% do total liberado. E muitos foram autorizados no Brasil depois de terem sido banidos em outros países. É uma vergonha um país fazer papel de lixeira”[v].
Porteira aberta
Na ânsia aproveitar a porteira aberta pela perplexidade da sociedade, dispersa e atônita com a pandemia, em 21/2/2020 foi publicada uma “ousada” medida (Portaria nº 43/2020 da Secretaria de Defesa Agropecuária)[vi], liberando a “aprovação tácita” de agrotóxicos caso um parecer não fosse apresentado no prazo de 60 dias pelos órgãos técnicos do governo. Antes de entrar em vigor, a “esperta” portaria foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Na decisão, o Ministro Relator destacou o perigo à saúde pública, agravado pela pandemia do novo coronavírus[vii].
O homem domina as técnicas agrícolas há cerca de 10 mil anos. O uso do veneno, realidade das últimas seis ou sete décadas, remete ao emprego de produtos desenvolvidos originalmente para a guerra. Armas químicas, feitas para matar.
Por isso, o termo biocida: produto para exterminar a vida. O problema é que o uso na agricultura não é neutro nem certeiro no alvo. Não atinge apenas formas de vida indesejadas.
Pesquisadores independentes da área da saúde relacionam a exposição ao veneno, tanto nas regiões de cultivo quanto no consumo de alimentos com resíduos, a doenças crônicas, como o câncer, além de outras enfermidades decorrentes da desregulação hormonal. São referidas correlações com o Alzheimer, o Parkinson, o Autismo, a infertilidade, além de casos de suicídios, abortos espontâneos, puberdade precoce e malformação de bebês.
Extremamente tóxicos
Dados do Ibama apontam que os principais produtos: Glifosato; 2,4-D; Mancozeb; Acefato; Óleo Mineral; Atrazina, e Paraquate; representam 72% do consumo. São insumos, tóxicos ou extremamente tóxicos, que o Instituto Nacional do Câncer relaciona com o câncer de pele, da cavidade nasal, sinonasal, nasofaringe, orofaringe, laringe, leucemias, linfomas não Hodgkin, neoplasia e do pâncreas, dentre outros[viii].
No caso da exposição ao herbicida 2,4-D, desde 2014 o Ministério do Desenvolvimento Agrário[ix] aponta perigos à saúde humana: desregulação endócrina, perturbações nas funções reprodutivas, alterações genéticas e efeitos cancerígenos, além do desenvolvimento da doença neurodegenerativa de Parkinson.
A exposição ao fungicida Mancozeb é referida em publicação do Ministério da Saúde de 1998 que indica a correlação com o parkinsonismo, pela ação no sistema nervoso central[x].
O principal veneno, Glifosato, foi classificado pela Agência Internacional de Pesquisas em Câncer (Iarc) da Organização Mundial da Saúde (OMS) como provável cancerígeno humano (grupo 2A), em 2015. Apesar disso, na reavaliação toxicológica de 2019 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) concluiu que o produto poderia continuar sendo usado. Segundo a Agência, não haveria evidência científica de que causaria câncer, mutações ou malformação de fetos.
Trabalho no agricultura
O parecer, todavia, tem ressalvas e recomendações (talvez para resguardar os técnicos responsáveis) inconciliáveis com a ordem dos fatos na vida real: I) reconhece que os mais expostos aos riscos seriam os trabalhadores; II) alerta que seria preciso melhorar a capacitação; III) reconhece que mais de 60% dos que aplicam agrotóxicos não completaram o ensino fundamental; e IV) conclui, transferindo a responsabilidade pelos prováveis danos ao trabalhador, que “Há muitos desafios para que o trabalhador entenda o risco. Cursos padrão podem ter limitação para atingir os afetados”.
Como se não bastasse, a nova redação da Norma Regulamentadora 31 – NR 31, que dispõe sobre Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura (Portaria nº 22.677, de 22/10/2020), reduziu as exigências e as responsabilidades do empreendedor que usa veneno, inclusive a capacitação foi flexibilizada.
A pressão sobre a atividade regulatória da Anvisa, numa quadra em que não há constrangimento em expor teses negacionistas quanto às consequências ambientais da tolerância ao veneno, restou demonstrada em dois episódios recentes, abordados em outro texto[xi]. Em 2017, a Agência liberou, às pressas, o Benzoato de Emamectina, que já havia sido vetado pela própria agência devido ao alto grau de perigo à saúde. No caso do Paraquate, ligado à Doença de Parkinson, mutações genéticas e indicação de letalidade, a Anvisa havia determinado redução gradual com banimento total em 22/9/2020. Às vésperas da data, o setor econômico logrou que fosse autorizada a desova dos estoques na safra de 2021.
Há dois mitos da propaganda da indústria química que, indiferente às evidências, lucra vendendo aqui produtos que já não são permitidos nos países de origem, que precisam ser desconstruídos:
Não há uso seguro
1º – O mito de que o uso seria seguro – Não há possibilidade, em condições reais de campo, do uso seguro de veneno. Os Equipamentos de Proteção Individual para os trabalhadores foram projetados para trabalhadores qualificados e climas amenos, realidade distinta das principais fronteiras agrícolas. As roupas impermeáveis, as máscaras e a parafernália, semelhante à de um astronauta, são de uso improvável onde faz 30º, 35º ou 40 ºC. Além disso, é alto o analfabetismo funcional entre os trabalhadores que manuseiam o veneno.
Os frequentes episódios de deriva, quando o veneno aplicado por aviões ou tratores se espalha atingindo mananciais de água, áreas habitadas, escolas e plantações vizinhas, também demonstram as limitações da fiscalização e a inconsistência do discurso que propala a precisão dos métodos de aplicação.
Sobre a contaminação da água potável e a “legalização da contaminação”, escrevemos em outra oportunidade[xii].
Registre-se que, apesar disso tudo, o setor atua fortemente no Congresso Nacional para eliminar as normas de proteção.
Desigualdade
2º – O mito de que o veneno seria necessário para alimentar o mundo – Relatório da ONU DE 2017[xiii] afirma que “a utilização de mais pesticidas não tem nada a ver com a eliminação da fome”. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mesmo com a produção crescendo, o problema é a pobreza, a desigualdade e a distribuição. A ONU também critica as corporações globais que fabricam pesticidas pela “negação sistemática de danos” e pelas “táticas de marketing agressivas e antiéticas”. Acusa o pesado lobby que tem “obstruído as reformas e paralisado restrições a pesticidas globalmente”.
No Brasil, a postura identificada pela FAO tem viabilizado decisões administrativas gravosas ao meio ambiente e à saúde humana. Também impulsiona projetos de lei permissivos ao veneno e retarda iniciativas que reduziriam o agravamento do quadro de danos. O Projeto de Lei nº 6.670, de 2016, que aponta caminhos para um modelo menos tóxico, por meio da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara), segue parado.
A transição para um modelo de agricultura menos tóxico é uma obrigação constitucional. A necessidade de pesquisa e tratamento diferenciado, no crédito e na tributação, a alternativas que reduzam os agravos, tem previsão expressa na Constituição.
Meio ambiente
I) a nossa ordem econômica não pode olvidar que também tem por fim assegurar, a todos, existência digna (Art. 170/CF);
II) a defesa do meio ambiente também se concretiza mediante tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (Arts. 196 e 225/CF);
III) o impacto ambiental deve orientar as atividades de pesquisa, de extensão e de estímulo e fomento à inovação (Art. 213/CF); e
IV) pelo princípio da seletividade tributária (Arts. 153 e 155), os agrotóxicos “não se afiguram essenciais para fins de seletividade tributária; mormente considerando a sua intrínseca nocividade à vida saudável e o seu elevado potencial para a eclosão de danos ambientais” (Manifestação da Procuradoria-Geral da República na ADI 5553).
As recentes manchetes e as fotos de famintos nas filas para a doação de ossos e a compra de feijão e arroz quebrados, inclusive em regiões de grande faturamento do agronegócio[xiv], denunciam a nossa contradição e a miséria em meio ao aparente sucesso do modelo.
Desmatamento e expansão do agro
Dados oficiais [xv] demonstram que o desmatamento e a expansão do agro estão se dando com maior uso de veneno, concentração de terras em propriedades maiores para a produção de commodities agrícolas de exportação: soja, laranja, tabaco, cana de açúcar e algodão, cotadas em dólar; e significativa redução dos postos de trabalho no campo.
A produção de commodities de exportação está aumentando. Mas o maior uso de veneno não resolve os problemas da pobreza, da desigualdade e do acesso aos alimentos. Simultaneamente, tem havido redução das áreas destinadas à produção de alimentos básicos: Arroz, feijão,trigo e mandioca. Por isso, também, o aumento de preços que tem castigado os brasileiros.
No nosso persistente quadro de desigualdades, na segunda década do século 21, em meio à recaída civilizatória e ao ressurgimento do discurso e de práticas do liberalismo predatório, de devastação, ecoa o desespero dos intrépidos marinheiros de Cabral, que não estavam todos no “mesmo barco”, no que diz respeito ao acesso à comida, racionada por precaução. Nas caravelas, observava-se a hierarquia social, replicada a bordo. Os capitães da frota, de origem nobre, tinham direito a vinho, carne e peixe. A ração dos marujos era composta basicamente de biscoitos duros e salgados. Quando os biscoitos acabavam ou se estragavam, os marinheiros recorriam aos ratos. Havia até uma cotação para o preço do rato nos navios.
O sucesso dos que se aventuraram por mares nunca dantes navegados rendia fortunas, para alguns. Cabral teria recebido o equivalente a 35 quilos em ouro, ao passo que dois terços da tripulação morreram no mar, vítimas de naufrágios ou de doenças, como o escorbuto. Na odisseia venenosa desse início de século, a riqueza proporcionada a poucos que se beneficiam do modelo das monoculturas quimicodependentes gera custo ambiental, humano e social, que é sustentado por todos os brasileiros e onera o SUS.
Recorrendo a uma antiga expressão: “tá osso!”
[i] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/06/04/justica-dos-eua-proibe-vendas-do-agrotoxico-dicamba-no-pais.ghtml
[ii] https://aprosojabrasil.com.br/comunicacao/blog/2021/08/17/aprosoja-brasil-manifesta-preocupacao-com-registro-de-biotecnologia/
[iii] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/01/opinion/1543673424_338540.html
[iv] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/governo-bolsonaro-tem-recorde-de-mortes-e-de-agrotoxicos/
[vi] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-43-de-21-de-fevereiro-de-2020-244958254
[vii] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440646&tip=UN
[viii] https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/agrotoxicos
[x] http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/manuais/epidemiologia/Guia%20de%20Vigilancia%20Epidemiologica.pdf
[xi] https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2020/12/4892764-o-veneno-e-o-direito-do-cidadao.html
[xiii] https://www.ufjf.br/ladem/2017/03/28/onu-denuncia-mito-de-que-pesticidas-sao-necessarios-para-alimentar-o-mundo/
[xiv] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-25/arroz-quebrado-bandinha-de-feijao-e-ossos-de-boi-vao-para-o-prato-de-um-brasil-que-empobrece.html