Por Jan Douwe van der Ploeg
Do Outras Palavras
Uma em cada duas famílias brasileiras sofre de insegurança alimentar – ou seja, seus membros não sabem, ao despertar, se poderão alimentar-se adequadamente ao longo do dia. Em apenas doze meses, o preço do óleo de soja subiu 83,79%; o do feijão, 48,19%; e o do músculo, um dos cortes bovinos menos caros, 46,06%. A cena urbana brasileira agora é marcada pelas famílias que imploram por comida diante dos supermercados, ou pelas pequenas multidões que se aglomeram em bairros como a Glória (zona Sul do Rio), para esperar que motoristas de caminhão lhes doem ossos e pelanca bovinos – antes destinados aos cães. Mas seriam a fome e os preços descontrolados da comida uma nova jabuticaba brasileira?
O primarismo arrogante do governo Bolsonaro tem o poder de agravar qualquer drama, mas uma série de dados demonstra que estamos diante de um problema mais profundo e estrutural. O pesquisador holandês Jan Douwe van der Ploeg, professor nas Universidade de Wageningen, na Holanda, e de Pequim, na China e parceiro intelectual de diversos movimentos camponeses pelo mundo afora, está empenhado em compreendê-lo. Num vasto estudo, que acaba de ser traduzido e publicado no Brasil – e que começamos a publicar a seguir – ele aponta a existência de uma crise alimentar e agrícola global associada à pandemia da Covid-19, mas com origens anteriores a ela. Entre outros fenômenos, Van der Ploeg destaca “a configuração a pleno vapor de uma onda de fome” e a elevação em cerca de 50%, nos últimos dois anos, dos preços das commodities agrícolas.
A pandemia, pensa o professor, serviu como gatilho. Ela atingiu múltiplos setores da cadeia agroalimentar – de frigoríficos fechados pelo isolamento social a rotas marítimas interrompidas e restaurantes vazios. Ao fazê-lo, destroçou ou impôs perdas severas a pequenos produtores de bens e serviços e permitiu que os gigantes ocupassem espaço ainda maior. Mas se isso se deu, é porque o modelo dominante já era regido por uma espécie de lei das selvas.
Van der Ploeg desvenda o mundo dos impérios alimentares que hoje dirige a produção do alimento do mundo. Um punhado de corporações gigantescas, mostra ele, controla das sementes aos fertilizantes, agrotóxicos, estocagem dos produtos, vias de transporte, industrialização e varejo. Tais impérios são cada vez mais financeirizados. Por visar, essencialmente, o lucro máximo e a acumulação, a produção passou a depender dos serviços financeiros – empréstimos, seguros, garantias, fundos de todos os tipos, mercados gigantescos de derivativos – que cresceram a seu redor. Um punhado de banqueiros pode, por exemplo, deixar de oferecer crédito a determinado setor agrícola (por julgar que oferecer riscos superiores à média) e inviabilizá-lo.
Os impérios alimentares e as finanças articuladas com eles, prossegue Van der Ploeg, adquiriram, na configuração hegemônica, poder sobre o mundo agroalimentar muito superior ao dos Estados e sociedades. Por isso, os preços e as políticas variam movidos por interesses muito poderosos – não por objetivos humanistas, como reduzir a fome ou oferecer alimentação saudável. Porém, alerta o autor, o sistema tem pés de barro. A produção real apoia-se na estrutura financeira. O que acontecerá se esta revelar-se, como na crise de 2008, um castelo de cartas?
Felizmente, sustenta por fim van der Ploeg, a Agroecologia avançou muito nas últimas décadas – e pode consolidar-se como alternativa. O último capítulo do estudo descreve os progressos, tanto entre os que produzem alimentos (e constróem aos poucos um modelo contra-hegemônico) quanto entre os consumidores (que rejeitam crescentemente os ultraprocessados, os venenos agrícolas, a homogeneização que destrói antigas culturas alimentares). Mas o trabalho não difunde um otimismo vazio. O autor aponta, também, os limites a um avanço agroecológico mais vasto. E chega a apontar, ao final, caminhos concretos para superar estes entraves.
O trabalho de van der Ploeg foi traduzido e editado no Brasil pela AS-PTA, uma associação de pesquisadores e ativistas empenhados na construção da Articulação Nacional da Agroecologia e na assessoria direta a organizações e movimentos camponeses. Será publicado em três partes neste site, entre hoje e 6/10. Nos próximos meses, a AS-PTA e Outras Palavras trabalharão em conjunto para produzir uma sequência de textos e diálogos sobre um novo modelo agrícola para o Brasil. A cada mês, haverá um novo ensaio e um diálogo, via internet, sobre ele. Este esforço resultará também na construção, em parceria, de um dos capítulos do projeto Resgate, por meio do qual queremos refletir sobre um Brasil pós-neoliberal.
O primeiro diálogo da série ocorrerá em 7/10, quinta-feira próxima. Teremos o prazer de ouvir Jan Douwe van der Ploeg. Ele conversará, com Roselita Vitor, liderança proeminente de um dos movimentos territoriais de agroecologia mais avançados no Brasil – o da região da Borborema, na Paraíba. O encontro, virtual, poderá ser acompanhado nas redes de Outras Palavras e da AS-PTA. Fique, a seguir, com a primeira parte do ensaio de Van der Ploeg. (Antonio Martins)
Apresentação
A pandemia da Covid-19 evidenciou três faces perversas e interdependentes do capitalismo neoliberal: a globalização da insegurança econômica, da vulnerabilidade social e dos agravos à saúde coletiva. Em outras palavras, explicitou a baixa resiliência de um sistema global de governança econômica fundamentado no livre fluxo planetário de finanças em benefício de um pequeno e cada vez mais reduzido número de corporações transnacionais. A partir de março de 2020, com a oficialização da pandemia pela Organização Mundial de Saúde, a crise sanitária desencadeou crises sucessivas de natureza econômica e social mundo afora.
As expressões desse efeito dominó foram particularmente visíveis nos sistemas alimentares. É disso que trata esta publicação. Elaborado no calor dos acontecimentos, o texto de Jan Douwe van der Ploeg revela com dados conjunturais a incapacidade estrutural de um sistema governado por interesses corporativos de se autorregular a fim de proteger os interesses coletivos mais elementares, como o de assegurar o direito humano à alimentação e, por consequência, à saúde.
A relação direta entre o sistema alimentar globalizado e a deterioração da saúde coletiva havia sido analisada pouco antes do início da pandemia, em 2019, por uma comissão científica organizada pela prestigiosa revista médica The Lancet. Segundo o relatório apresentado pela comissão, ao uniformizar os padrões de produção e consumo alimentar, a globalização é responsável por três fenômenos cuja interação sinérgica intensifica seus impactos sobre a saúde em todo o mundo: a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas. Tal círculo vicioso regressivo foi identificado como uma sindemia global. Segundo a comissão, a raiz dessa interação mutuamente agravante entre a saúde humana e a saúde planetária é inequívoca: de um lado, a produção agropecuária realizada em grandes escalas, baseada no uso intensivo de fatores artificiais, como agroquímicos, hormônios e antibióticos; de outro, o consumo de alimentos ultraprocessados; para sustentar energeticamente essa cadeia de irracionalidade ecológica e sanitária, o uso intensivo de combustíveis fósseis.
Como bem identificou Boaventura Sousa Santos, há uma cruel pedagogia do vírus a alertar que a normalidade imobilizante do status quo neoliberal nos conduzirá irremediavelmente à anomia social. Nesse sentido, a pandemia do coronavírus deve ser assimilada como um exame surpresa para testar a capacidade de nossa geração de construir respostas efetivas à crise estrutural gerada pelo regime agroalimentar neoliberal. Aprender com essa dolorosa vivência coletiva em escala global, bem como com as respostas adaptativas ativamente construídas em escalas locais pela sociedade civil, com ou sem apoio dos Estados, é condição para que sejam aglutinadas forças sociais capazes de superar a necropolítica imposta pelos impérios alimentares através de governos neoliberais.
Os caminhos para essa superação não estão sinalizados. Para serem trilhados, além de mobilização social, exigirão criatividade política. Após diagnosticar as raízes da crise, o texto de Ploeg apresenta pistas a serem seguidas. Como peças de um quebra-cabeças, essas pistas precisam ser combinadas coerentemente com o princípio político da soberania alimentar, o que necessariamente implica o estabelecimento de novas relações entre os Estados, movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
Paulo Petersen
Coordenador-Executivo da AS-PTA
Introdução
O surgimento e a subsequente propagação global da doença da Covid-19 desencadearam uma crise político-econômica sem precedentes. Uma crise que provavelmente persistirá por muito mais tempo do que os riscos sanitários atuais. A Covid-19 revelou, de forma implacável, algumas das principais fragilidades das economias capitalistas tardias. Isso se aplica especialmente aos padrões hegemônicos de produção, processamento, distribuição e consumo de alimentos. Estes estão cada vez mais desordenados e há sinais preocupantes de que uma crise de fome está se configurando a pleno vapor 2. Embora ainda haja muitas incertezas sobre como essa crise multifacetada evoluirá, este texto examina como a crise sanitária começa a desestabilizar o sistema alimentar global, uma situação que pode se agravar. O artigo não se aprofunda nas discussões sobre as origens e as causas da pandemia da Covid-19 (para uma síntese bem fundamentada, consulte IPES, 2020). Limita-se estritamente a analisar a transmissão desse fenômeno sanitário para a economia como um todo, considerando três âmbitos inter-relacionados: o Estado-nação, as cadeias alimentares e a produção agrícola.
O texto se inicia examinando o âmbito dos Estados-nação. Aqui observamos uma diversidade intrigante, não apenas em termos do impacto da tragédia da Covid-19 e na maneira como ela se desdobrou em seus primeiros meses, mas também na grande diversidade de formas com que ela interferiu na esfera político-econômica. O segundo âmbito de análise está relacionado à organização de cadeias alimentares. Aqui, a Covid-19 serviu como um grande holofote que expôs de maneira implacável as principais fragilidades dessas cadeias. Avalio que uma análise desses pontos fracos nos permite desenvolver novas compreensões sobre o capital e o capitalismo. A análise ressalta como nos dias de hoje o capital atua na economia global como uma força desativadora e não como uma força produtiva. O terceiro âmbito analítico enfoca a produção primária. Nesse caso, dá-se especial atenção aos estilos contrastantes de agricultura, notadamente entre os estilos camponês e empresarial 3.
A análise prossegue com um exame do suposto retorno ao normal. Argumenta que um eventual restart será muito provavelmente comprometido pelos mesmos mecanismos que converteram a crise sanitária em uma crise político-econômica generalizada no sistema alimentar.
Por fim, o artigo traça os contornos das alternativas tão necessárias neste momento. Inclui uma síntese das principais contradições que provavelmente caracterizarão o período pós-Covid-19. Soberania alimentar, agricultura camponesa, mercados territoriais e Agroecologia são os principais componentes dessas alternativas. Esses componentes foram desenvolvidos ao longo de muitos anos em meio às múltiplas lutas contra o regime alimentar dominante (AKRAM LODI, 2015; ROSSET; ALTIERI, 2017) e agora se mostram mais pertinentes do que nunca. Ao mesmo tempo, teremos que lidar com muitas incertezas e será preciso explorar uma ampla gama de novas questões.
A narrativa hegemônica atual é marcada pelas interpretações simplistas. A pandemia da Covid-19 impôs o confinamento de parcelas consideráveis da sociedade (começando com o fechamento de restaurantes e escolas e depois de outras atividades). Essas restrições desaceleram a economia, geram desemprego e miséria, exigem o máximo de resistência das pessoas e levam ao aumento sem precedentes dos gastos públicos destinados a mitigar essa miséria (pelo menos parte dela). Uma vez que o vírus esteja sob controle, a economia irá supostamente retornar a sua rotina e ao ritmo normal. A sequência lógica que liga o vírus ao lockdown e em seguida à crise econômica é a espinha dorsal dessa narrativa hegemônica.
Em contraponto a essa narrativa, indicarei que a desativação da economia tem origem especificamente na forma como a financeirização subordina a economia real. A especificidade da atual crise da Covid-19 vem à tona quando comparamos a atual pandemia com a gripe espanhola que assolou o mundo em 1918. Do ponto de vista sanitário, a gripe espanhola foi muito mais mortal do que a Covid-19. Seu impacto político-econômico, porém, foi muito menor. Garrett observa que “a sociedade como um todo se recuperou da gripe de 1918 rapidamente” (2007, p. 22). Ele fornece dados que mostram que a redução do Produto Nacional Bruto após os surtos de gripe espanhola foi muito inferior às projeções atuais ligadas à Covid-19. Garrett cita Crosby, que concluiu que a gripe mortal daquela época “tinha [uma] influência permanente não sobre as coletividades, mas sobre os átomos da sociedade humana – os indivíduos” (CROSBY, 2003, p. 323).
Agora se passa o contrário. Existem, é claro, interações altamente complexas entre os as medidas de isolamento social, a economia financeira e a economia real. Mas o papel exercido pela economia financeira definitivamente não pode ser deixado de fora da análise. Ela não é capaz de lidar com elementos inesperados e potencialmente ameaçadores. Podemos constatar isso pelas abruptas quedas nos preços das ações após os estágios iniciais da paralisação geral das atividades. Por outro lado, houve um aumento radical nos preços das ações logo os primeiros parcos sinais de otimismo começaram a emergir. Quando há incertezas, o capital financeiro se retira, deixando a economia real em uma crise muito mais profunda do que a que poderíamos associar apenas ao vírus da Covid-19. Mais adiante ilustrarei esse aspecto com uma discussão crítica acerca do regime alimentar dominante e da maneira como ele atualmente desencadeia uma série de efeitos paralisantes ao longo dos circuitos que ligam a produção ao consumo de alimentos.
O âmbito dos Estados-nação
Há uma série de fenômenos assustadores que surgem com a atual crise da Covid-19. Estes vão desde a fome generalizada e crescente, levando em alguns casos a motins alimentares, à escassez de partes da produção agrícola que são repentinamente convertidas em excedentes que apodrecem nos campos, ao mesmo tempo em que um excessivo contingente de animais fica aguardando o abate. A renda dos agricultores está caindo, e suas perspectivas são sombrias, enquanto centenas de milhares de trabalhadores migrantes rurais estão em níveis de desespero ainda mais críticos do que em situações supostamente consideradas normais (CORRADO; DE CASTRO; PERROTTA 2017). Abatedouros em todo os Estados Unidos (e também alguns no Reino Unido e no Canadá) fecharam 4, e cadeias de varejo consideraram o racionamento de carne. A Vion NL, a grande indústria de processamento de carne na Holanda, vivenciou uma redução considerável no valor de suas ações devido à queda de 40% em suas vendas, que normalmente iriam para restaurantes, serviços de fornecimento de refeições preparadas (catering) e gigantes do processamento de alimentos, como a Unilever. Para essas indústrias de alimentos, o fluxo de capital foi suspenso, pelo menos em parte.
A empresa “Food Service Institute Nederland” indicou que o “setor de fornecimento de refeições” foi mais afetado (com expectativa de perda de até 7,1 bilhões de euros em 2020) do que qualquer outro setor econômico, enquanto o banco holandês RABO prevê quedas gerais de preços de até 30% no setor de produtos agrícolas.
No entanto, é importante nesse aspecto observar que a desordem gerada não incide da mesma maneira quando comparamos os países importadores com os exportadores de alimentos. Durante a inflação dos preços dos alimentos no período 2007-2008, a escassez de alimentos e os motins alimentares associados ocorreram principalmente em países importadores de alimentos no Sul Global, o que contribuiu para desencadear a “Primavera Árabe”. Desta vez, porém, a turbulência é global, embora a forma como se expressa possa variar de lugar para lugar. Os países pobres e importadores de alimentos novamente enfrentam situações dramáticas. Já os países ricos e exportadores de alimentos também enfrentam escassez de alimentos específicos, perda de mercados e de excedentes, quedas repentinas na renda dos agricultores, fechamento de unidades de processamento, compulsão por estocar comida e a necessidade de o Estado intervir com bilhões de dólares ou euros para evitar a total paralisia do setor.
Essa globalização de rupturas, fricções e desequilíbrios está relacionada à tendência em quase todos os países do mundo de crescimento simultâneo tanto das importações quanto das exportações de alimentos nas últimas décadas. Dessa forma, países importadores ou exportadores de alimentos tornaram-se categorias sem sentido. Um país como o Peru é extremamente dependente da importação de alimentos. No entanto, é ao mesmo tempo um grande exportador agroalimentar. A Holanda é um grande exportador de alimentos. No entanto, também depende de importações de outros países para muitos produtos alimentares (grãos para a produção de pão, para mencionar apenas um dos produtos importados).
Também se pode dizer que muitas exportações só são possíveis porque há maciças importações de produtos agrícolas. Na Europa Ocidental, por exemplo, a exportação de animais, carne, laticínios e ovos não aconteceria sem a importação substancial de grãos para a produção de ração animal (sendo a soja o mais importante). Essa mútua dependência – tanto das importações quanto das exportações de produtos agrícolas – se aplica aos EUA, à União Europeia, à Turquia, à África do Sul, à China etc. (a Figura 1 apresenta uma visão geral do contexto da UE e dos EUA). Essa via de mão dupla se repete em cada categoria de produto. Países tanto importam batatas de algum lugar, quanto exportam batatas produzidas por si próprios, entre outros exemplos.
Essa globalização de rupturas, fricções e desequilíbrios está relacionada à tendência em quase todos os países do mundo de crescimento simultâneo tanto das importações quanto das exportaçõesde alimentos nas últimas décadas. Dessa forma, países importadores ou exportadores de alimentos tornaram-se categorias sem sentido.
[Figura 1] 5
Já a Figura 2 (com base em dados da Comissão Europeia de 2019) fornece cifras mais recentes (2016–2018) sobre os principais países exportadores e importadores de alimentos. Mostra que, em geral, os países que mais exportam são também os que mais importam alimentos. Esse mesmo processo, como já mencionado, se repete em países menores.
[Figura 2.]
À primeira vista, esse panorama improvável, se não enigmático, é o resultado de várias décadas de liberalização e globalização (KRUGMAN, 2013, p. 61-66). Regimes neoliberais e acordos comerciais incentivaram a produção agrícola voltada para os mercados de exportação, ao mesmo tempo em que aumentam a importação de alimentos baratos, perdendo o foco na produção agrícola para o consumo interno. Onde quer que as elites governantes tenham assumido posições fortes favoráveis ao setor privado, fortalecendo a dinâmica das importações e exportações, é possível observar desequilíbrios ainda mais acentuados. O caso da África foi e segue notável nesse sentido. Importações maciças de alimentos podem representar uma grande perda para toda uma nação, mas podem ser fonte de ganho considerável para grupos de capital privado. Situação comparável ocorreu no Norte Global, onde “manipular o mercado” (ou seja, importar grandes quantidades de alimentos e vendê-los a preços baixos para provocar a queda de preços no mercado doméstico) tornou-se uma estratégia importante. As perdas relacionadas a essas importações foram mais do que compensadas nos mercados domésticos pelas reduções de preços e das margens de lucro. Os mercados estavam ativamente conectados nesses esquemas de manipulação, reduzindo a renda dos produtores (SACCOMANDI, 1998; RABO Bank Group, 2013; PLOEG, 2019).
A consequência é o estabelecimento de um grande, complicado e contraditório sistema alimentar global. Existem centros, periferias e muitas desigualdades. Mas, no final, produz-se um todo entrelaçado, como se fosse um novelo emaranhado de interdependências. Tomemos, por exemplo, o caso dos bezerros machos. Em tempos normais, eles são vendidos e transportados para grandes empresas agrícolas especializadas em engorda. Em seguida, eles são processados em abatedouros especializados (administrados por empresas, como o Grupo Van Drie) e exportados (como, por exemplo, carne branca de bezerro), especialmente para a Itália (que não produz carne de novilho suficiente para satisfazer a procura de pratos clássicos como Saltimbocca, vitello al tonno, etc.). Geralmente, esse esquema funciona sem problemas. No entanto, a Covid-19 trouxe uma redução considerável no consumo de alimentos de luxo (principalmente porque restaurantes em toda a Itália foram fechados), levando polos do sistema como o Grupo Van Drie a reduzir sua aquisição de bezerros e o preço que paga por eles. Assim, na Holanda, os bezerros machos têm que permanecer em estabelecimentos leiteiros que dificilmente têm espaço para acomodá-los. Esses animais, portanto, não contribuem mais para os fluxos de renda dos estabelecimentos agrícolas. Além disso, o preço do leite também caiu e as importações de bezerros para a Holanda (cerca de 800.000 por ano), vindas da Alemanha, da Europa Oriental, da Irlanda e de outros países foram quase que completamente interrompidas. Em síntese, a crise originada na Itália repercutiu nos abatedouros holandeses, nas empresas especializadas em engorda de bezerros, nos estabelecimentos de laticínios e nas empresas de transporte, para em seguida reverberar na Alemanha, na Europa Oriental e em outros países. Bezerros machos são apenas uma das muitas commodities cujos elos de interdependência se estendem no tempo e no espaço6.
Outra preocupação relacionada às mudanças em escala nacional que ocorreram em todo o mundo foi a restrição às exportações de arroz impostas na Índia, no Vietnã, no Camboja e em Mianmar 7 .Isso sem dúvida levará à escassez e à fome imediatas em grandes partes da África, assim como acarretará aumento nos preços a serem pagos pelos consumidores, o que irá restringir ainda mais o acesso aos alimentos. Embora os aumentos simultâneos nas exportações e importações de alimentos também tenham sido – e ainda são – generalizados nos países africanos, a peculiaridade do continente africano como um todo é que o saldo geral é cada vez mais negativo (ver Figura 3). Isso torna a segurança alimentar na África altamente suscetível a uma maior deterioração devido a pressões externas. A possível escassez de arroz é apenas um exemplo – haverá certamente outros. A dura realidade é que esses riscos eram bem conhecidos por pessoas internas ao sistema – e eram negados publicamente. A Casa Real do Marrocos, por exemplo, possuía partes consideráveis da indústria de processamento de alimentos e supermercados do país. Há cerca de dez anos, essas propriedades foram vendidas (o capital foi liberado para ser investido em energia verde). Essa operação gigantesca foi feita para tentar evitar que uma eventual escassez de alimentos gerasse motins alimentares contra o monarca. No entanto, hoje o Maroc Vert, plano de desenvolvimento agrícola do país, direciona mais de 80% de seus recursos públicos para o setor agroexportador e apenas 10% a 15% para a agricultura camponesa.
Há ainda outro elo nessa teia de interdependências que é o dos ingredientes para a produção de concentrados industriais para alimentação animal. Os preços dos alimentos para animais estão atualmente subindo rapidamente, enquanto a produção de laticínios e a pecuária estão enfrentando quedas de preços em quase todos os lugares porque a demanda doméstica está se retraindo.
É importante ressaltar que essa paralisia em cadeia não se deve às medidas de isolamento social por si sós (limitações impostas à circulação de pessoas). Com base no exemplo acima, verificamos que os estabelecimentos agrícolas continuam operando, bezerros nascem, o transporte continua possível, as faixas verdes permitem o livre cruzamento de fronteiras com mercadorias. Na Itália, as pessoas podem ir às lojas ou pedir entregas em domicílio. No entanto, as transações intermediárias já não são lucrativas (ou adequadas para crédito e seguros) e, com isso, há muita insegurança. Consequentemente, o comércio triangular entre a Holanda, a Itália e outros países europeus entrou em colapso, os bezerros não podem mais ser vendidos, os rendimentos dos agricultores caíram e o consumo é, em determinados lugares, restrito.
Uma consequência inevitável dessa teia de interdependência é que um único germe de desordem no sistema tem a capacidade de se espalhar por toda parte, como se fosse um vírus no sistema 8. Stiglitz (2010) tem uma maneira muito elucidativa de ser referir a esse fenômeno de propagação: “é uma falha em alguma parte do sistema econômico global que vai contagiando outras partes” (xiv; ver também POSNER, 2009, p. 7). No contexto atual, esse contágio pode fazer com que as exportações sejam restringidas ou, em casos particulares, quase completamente suspensas 9 . Da mesma forma, um bloqueio em um único país pode facilmente gerar um efeito dominó em vários outros lugares.
Se a demanda doméstica estiver diminuindo (em alguns países mais do que em outros, e às vezes com quedas drásticas) e/ou a cadeia que deveria conectar a oferta e a demanda não estiver mais funcionando, as importações serão reduzidas e isso se traduz em problemas em outros lugares. Tal circunstância pode desencadear o incremento do excedente de força de trabalho, afetando particularmente as parcelas pobres das classes trabalhadoras e reduzindo os níveis salariais. Por sua vez, esses desequilíbrios ameaçam a continuidade e a lucratividade das interconexões estratégicas e levam a quedas dramáticas no comércio.
É assim que a tragédia atual está se desenvolvendo como consequência da dinâmica do sistema. Embora normalmente as transações comerciais sejam aceleradas e multiplicadas para atender ao imperativo da geração de lucro, este mesmo objetivo agora está fazendo com que haja uma desaceleração e até mesmo a interrupção total das transações. E isso também explica porque a crise atual vai muito além do impacto da questão sanitária inicial e das respostas dadas pelos Estados.
A ironia por trás de tudo isso é que, de todo o alimento produzido no mundo, apenas 20% atravessam fronteiras internacionais; 80% é produzido e consumido no mesmo país. No entanto, essa parte principal é fortemente afetada pelas muitas interdependências anteriormente discutidas. Por essa razão, o problema se desloca dos circuitos internacionais para os domésticos, da mesma forma que ocorre um efeito em cascata no sentido inverso. Seja qual for a direção, o resultado é uma ampla gama de consequências negativas.
O crescimento dos níveis de fome é uma dessas consequências. Conforme indicou David Beasley, diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos, em uma declaração recente ao Conselho de Segurança da ONU: “Há […] um perigo real de que potencialmente mais pessoas morram devido ao impacto econômico da Covid-19 do que do próprio vírus”. Uma pandemia de fome pode muito bem ser o resultado (BEASLEY, 2020).
A precarização das condições de trabalho desempenha um papel especial nessa dinâmica. Nas últimas décadas, a integração ao mercado global, a orientação para a agroexportação e a pressão crescente de e por alimentos industriais baratos levaram milhões de famílias camponesas a condições de marginalidade e precariedade, obrigando muitas delas à migração em busca de trabalho. Muitos desses fluxos migratórios se dirigiram para os campos, pomares e estufas de grandes empresas agrícolas na Europa e nos Estados Unidos (CORRADO; DE CASTRO; PERROTTA, 2017; MINKOFF-ZERN, 2018) onde se tornaram trabalhadores indispensáveis. A precarização, entretanto, veio junto com eles. Esses trabalhadores migrantes enfrentam baixos salários, insegurança crônica, condições de trabalho degradantes, moradia precária e uma falta quase total de condições básicas de higiene e assistência médica. Essa precarização também se tornou característica crônica dos sistemas alimentares localizados em países ricos. A grave crise da Covid-19 teve um impacto brutal nesses trabalhadores. Muitos deles são imigrantes e perderam seus empregos. Não têm acesso a sistemas de bem-estar social, nem em países importadores nem em países exportadores de mão de obra. As restrições à mobilidade das pessoas tornaram mais difícil o deslocamento ao local de trabalho e à volta para casa. Esses efeitos costumam afetar os mais diversos setores e se disseminam por todo o sistema alimentar internacionalizado. Primeiro, as colheitas em países importadores de mão de obra estão sendo perdidas. Em segundo lugar, isso pode se traduzir em escassez de alimentos específicos, não apenas nos países importadores de mão de obra, mas em outros países que normalmente importam determinados produtos alimentares provenientes deles. Em terceiro lugar, há um súbito agravamento da pobreza nos países exportadores de mão de obra: os trabalhadores migrantes não têm mais renda, o que prejudica as remessas de que suas famílias dependem. Isso se traduz em uma retração da demanda interna por alimentos nos países que inicialmente exportam mão de obra, com repercussões tanto para o setor do agronegócio quanto para a agricultura camponesa dessas regiões. Assim, a precarização se expande e contribui, pouco a pouco, para a acentuação de uma crise alimentar que a essas alturas parece inevitável.
(continua)
1Faculdade de Humanidades e Estudos de Desenvolvimento, Universidade Agrícola da China, Pequim. Departamento de Sociologia Rural, Universidade de Wageningen, Holanda.
2 Uma série de fontes foi utilizada para reunir notícias atualizadas sobre o desdobramento da crise. Foodlog.nl faz um apanhado diário dos comunicados de imprensa mais relevantes (incluindo jornais internacionais). A Via Campesina também disponibiliza materiais muito úteis por meio de seu boletim eletrônico ([email protected]), notícias e o #StayHomeButNotSilent. Os dados foram usados apenas se encontrados pelo menos em duas fontes diferentes e confiáveis.
3 Os três âmbitos estão intimamente interligados. Grosso modo, a hegemonia dos impérios alimentares gera muitos desequilíbrios no interior dos Estados-nação e entre estes. Ao mesmo tempo, o funcionamento dos impérios alimentares intensifica a “tesoura de preços” (aumento dos custos de produção e queda no preço dos produtos) sobre a agricultura, levando os agricultores ao endividamento.
4 Os altos níveis de contaminação dos trabalhadores de abatedouros com Covid-19 são usados, pelo menos em parte, como uma desculpa para seu fechamento. No entanto, isso não explica tudo. Desde que a China suspendeu as importações de carne de porco, os preços do mercado mundial despencaram. Na Itália, os abatedouros enfrentam grandes problemas econômicos, pois os restaurantes foram fechados e as vendas de fast food foram drasticamente reduzidas. Esses efeitos também vão no sentido reverso da cadeia alimentar, fazendo-se sentir nas empresas agrícolas individuais, o que faz com que criadores de gado não consigam vender seus animais em lugar nenhum.
5 Dados extraídos de http://www.fao.org/faostat/en/#data/TP e https://ec.europa.eu/eurostat/cache/metadata/en/ext_go_ agg_esms.htm). Nas tendências apresentadas, ocorreu uma pequena queda em 2009. Isso se deve à crise de 2008-2009, que fez os preços dos produtos agrícolas baixarem logo após os preços relativamente altos de 2007-2008.
6 Outro caso bem conhecido são os sistemas italianos de engorda de vacas em confinamento. Eles dependem da França e da Polônia para a entrega de bezerros. Esse sistema contrasta muito com o sistema ‘Chianina’, que consiste na criação de animais com base em bezerros, ração e forragem produzidos localmente (ver Ventura, 1995).
7 Comerciantes de arroz indianos pararam de assinar novos contratos de exportação em meio às restrições no país para conter a propagação do coronavírus, já que a escassez de mão de obra e problemas logísticos dificultaram a entrega até mesmo para o cumprimento dos contratos existentes. Ao mesmo tempo, Camboja, Vietnã e Mianmar restringiram suas exportações de arroz, a Índia exporta seu arroz não basmati principalmente para Bangladesh, Nepal, Benin e Senegal, e arroz basmati premium para Irã, Arábia Saudita e Iraque. Camboja e Vietnã também exportam grandes quantidades de arroz para a África.
8 Ironicamente, quando um vírus ou bactéria real entra no sistema, como foi o caso da febre aftosa, da febre Q e semelhantes, a situação é resolvida por meio da erradicação. Isso significa que todos os animais em círculos largos ao redor dos focos iniciais são mortos e todos os movimentos de transporte (incluindo os de humanos) são proibidos. Ou seja, o sistema fica paralisado até que os vírus ou bactérias sejam eliminados. Agora é a Covid-19 em si que traz consigo a paralisia, ainda mais porque os focos estão em toda parte.
9 Isso pode ser devido a uma série de causas específicas. Uma redução acentuada no poder de compra e uma redução no mercado de varejo; aumento das tarifas de transporte; falta de crédito à exportação; falta de seguros para o crédito à exportação; mudanças nos padrões de consumo de bens importados; mudanças nos principais circuitos comerciais, fechamento de fronteiras e muito mais.