Infelizmente, o que avança é o ecocídio, o uso massivo de agrotóxicos, com danos ambientais
Por Leonardo Melgarejo, no Brasil de Fato
Nesta semana em que foi criada no Brasil a Rede Irerê de Proteção à Ciência, que objetiva limitar as possibilidades de manipulação de informações, fraudes científicas e perseguição a pesquisadores que desenvolvem estudos no rumo oposto ao enunciado em campanhas de marketing pouco respeitosas aos direitos humanos, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) promoveu audiência publica para discussão a respeito do trigo IND-ØØ412-7. A variedade transgênica é tolerante ao herbicida glufosinato de amonio e supostamente tolerante à seca.
A empresa Bioceres, detentora da patente daquele grão, pretende autorização para exportação desse trigo geneticamente modificado (GM) desde as lavouras argentinas até nossos estômagos. Ela não estaria interessada em plantios, mas apenas na exportação, o que desautorizaria demanda de estudos de impacto ambiental em nosso território. Também afirmava pretender comercializar o produto moído, o reduziria os riscos de escapes de sementes, envolvendo plantios indevidos.
Sustentava, ainda, que a característica de tolerância a um herbicida pouco estudado e associado a efeitos neurotóxicos, genotóxicos, problemas reprodutivos, seria irrelevante. Isso porque tal veneno não teria uso autorizado na Argentina, e portanto não haveria risco de sua presença nos grãos colhidos lá, e consumidos aqui. Não menos importante, afirmava larga e moderna instrumentalização de monitoramento do fluxo da farinha, que seria acompanhada desde os agricultores argentinos selecionados até as cadeias de distribuição brasileira. Bem como a inexistência de distinções nutricionais ou relacionadas ao processo de industrialização, entre aquele e outros tipos de trigo.
Afirmava, finalmente, e agora com apoio de representantes de alguma entidades brasileiras ali presentes, que os estudos realizados eram suficientes. E que estaríamos diante de situação essencial ao progresso futuro de nossa agricultura, verdadeira maravilha capaz de resolver os problemas de deficiência hídrica, permitindo expandir as áreas de trigo, cultivadas no Sul do Brasil, para o Centro-Oeste.
Sim, e ali começava a relação que pretendemos estabelecer entre a criação da Rede Irerê e entrelaçamentos duvidosos entre conhecimentos supostamente embasados em rigor científicos e interesses comerciais abusivos. Vejamos alguns exemplos:
1 – A ausência do herbicida, que não teria uso na Argentina – Breve pesquisa na base de dados de registros para agrotóxicos na Argentina mostra que, em janeiro de 2020, haviam 17 herbicidas à base de glufosinato de amônio, de uso autorizado naquele pais (Principio activo Enero 2020). O registro mais antigo teria seu uso aprovado desde 2012, e o mais recente, em abril de 2019. As origens? Alemanha, China, índia, sendo surpreendente a ignorância deste fato, pelo expositor, e a serenidade com que descartou questões relacionadas ao tema.
Seguramente, o presidente da CTNBio, que entendeu satisfatórias as referências à ausência de riscos relacionados a um veneno impossível de ser localizado, cobrará maior atenção das empresas, em outras atividades da Comissão. Neste quadro, que atitudes deveríamos esperar de agricultores que adquirissem sementes tolerantes a herbicida de livre comércio, largo uso e disponível no mercado? O que impediria seu uso?
2 – A ausência de riscos ambientais, e fluxo gênico, já que as sementes não seriam cultivadas no Brasil – Como aceitar este tipo de premissa, considerando nossa experiência com a soja “Maradona”, transgênica, e o fato de que animais, caminhões, maquinas e pessoas e cientistas de todas as índoles podem interferir neste processo?
3 – As vantagens decorrentes de importação da farinha – Representantes da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Culturas de Inverno, da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), da Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (ABIMAPI), entre outros, referiram a existência, no Brasil, há 80 anos, de cadeia de abastecimento que envolve mais de 70 mil padarias. São 923 mil funcionários, centenas de moinhos, cooperativas e unidades de processamento especializadas em trigo não transgênico e que produzem alimentos com diversas combinações de subprodutos do trigo.
A produção é, em parte, exportada para países que não aceitam grãos transgênicos. Esta cadeia resultaria ameaçada sem motivos, na ausência de demandas que permitissem compreensão de tal avanço no rumo da desindustrialização. Afirmaram ainda que cresce a rejeição interna de consumidores a alimentos geneticamente modificados e que 90% dos elos da cadeia estariam dispostos a interromper importações de trigo, da Argentina, caso o Brasil autorize o consumo deste trigo. Destacaram a impossibilidade de segregação das cadeias de produção, transporte, beneficiamento e processamento de grãos.
4 – A equivalência entre o trigo transgênico, o trigo “comum”, e qualidade dos estudos – Bruna Mationi (UFSC), Rubens Nodari (UCCSNAL) e outros, em seus questionamentos, sustentaram a impossibilidade de aceitar a afirmativa de ausência de problemas, referida no dossiê, levando em conta: (1) a presença, naquele trigo GM, de 62.000 pares de bases nucleotidicas adicionais ao proposto, sem explicação de suas funções; (2) estudos insuficientes e de curto prazo com algumas aves e 10 ratos que não teriam sido dissecados para avaliação de danos em órgãos internos; (3) impossibilidade de avaliar danos relacionados a toxicidade em derivados do trigo levando em conta apenas a sequencia de aminoácidos e não a configuração/estrutura espacial das proteínas, que inclusive se modifica em processos digestivos e afeta de forma pouco conhecida a diferentes grupos humanos; (4) ausência de referência à presença de sequencias relacionadas à tolerância a antibióticos e suas possíveis implicações, observadas no documento oferecido à análise da CTNBio.
5 – As promessas milagrosas – A mistificação de dados, para que expectativas favoráveis compensem acúmulo de evidências de realidade negativa, vem sendo utilizada neste campo da “ciência” há mais de duas décadas. As promessas de variedades transgênicas “mais produtivas”, “mais nutritivas”, “protetivas ao ambiente”, “tolerantes à seca” jamais se cumpriram, mas seguem anunciadas. Aliás, também o foram, nesta audiência pública.
Infelizmente, o que avança é o ecocídio, o uso massivo de agrotóxicos, com danos ambientais, com esfacelamento do tecido social no campo e com a submissão do Brasil a interesses transnacionais. No caso da tolerância à seca, por exemplo, deve ser mencionado que no Brasil e na Argentina já houve autorização para plantio de soja GM, com mesmo gene HB4, que supostamente conferiria tolerância à seca, neste trigo. Após a aprovação da CTNBio para uso daquela soja, e como seria de se esperar, o assunto sumiu da pauta. Aqui, e na Argentina. Os cientistas que afirmavam vir dali a redenção contra as secas, agora, dedicam-se à aprovação deste trigo, doa a quem doer.
Finalmente, e retomando a necessidade de apoiarmos a estruturação da Rede Irerê de Proteção a Ciência e o fortalecimento do Movimento Ciência Cidadã e da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade e a Natureza da América Latina (UCCSNAL), destaque-se a afirmativa de Federico Trucco, diretor da Bioceres Crop Solutions. É esta a empresa argentina que lucrará com este negócio, e parece pouco preocupada com os pontos acima discutidos.
Segundo ele, em entrevista publicada em 19 de outubro: “As questões de segurança ambiental e saúde humana não estão em discussão”… “Nesse caso, é uma tecnologia de segunda geração que tem a ver com o uso eficiente da água”.
Edição: Marcelo Ferreira