Ex-agentes da Sucam usavam DDT contra a malária na década de 70. Especialista diz que agentes estão intoxicados por agrotóxicos. Arlete abandonou o ofício de costureira e cuida, há 28 anos, do marido Sebastião que não fala e não anda (Foto: Tácita Muniz/G1)
Tácita Muniz Do G1 AC
“Tenho certeza que não escapo dessa, já preparei os meus filhos”. A frase sai arrastada, entre os dentes de Raimundo Gomes da Silva, que aos 82 anos integra a chamada ‘lista da morte’, formada por ex-servidores da extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), que tiveram contato direto com o pesticida Diclorodifeniltricloroetano (DDT), usado para conter o mosquito da malária na região amazônica nas décadas de 70 a 90, no Acre. (Veja galeria de fotos)
O aposentado desenvolveu problemas no coração, rins e tumores. No Acre, o extinto órgão do governo federal possuía cerca de 540 funcionários, dos quais 240 morreram. Até este mês, 15 estão na lista da morte somente em Rio Branco. Sem ter a intoxicação reconhecida pelo poder público, o levantamento é feito pela Associação DDT e Luta Pela Vida, que estima que o número de ex-agentes ‘condenados à morte’ deve ser ainda maior.
“Comecei a contabilizar as mortes em 2000, quando começamos a perceber que homens que trabalhavam com a gente desenvolviam doenças crônicas. Mas, são 22 municípios no Acre, com certeza o número de ex-servidores que estão em casa só esperando a morte chegar deve ser maior do que 15, pois esse número que temos, da espera, é referente só a Rio Branco”, explica o presidente da associação, Aldo Moura, de 63 anos.
O DDT começou a ser usado no Brasil logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, homens, sobretudo da região amazônica, conhecidos por ‘guardas mata-mosquitos’ ou apenas ‘soldados da malária’, foram recrutados para combater uma verdadeira guerra contra o mosquito vetor da malária e outras endemias. Sem conhecimento e acreditando que o veneno era inofensivo ao ser humano, os agentes se embrenhavam na mata e tinham contato direto com o produto, usando apenas um chapéu de alumínio e uma farda.
Apenas em 2014, a associação contabilizou 11 mortes de ex-agentes. No início de janeiro de 2015, dois homens já morreram. Atualmente, a associação luta para que esses trabalhadores que prestaram serviço ao Estado possam contar com uma unidade de saúde específica para amenizar as dores que sentem. A evolução dos sintomas é semelhante para todos: começa com a perda do tato, coceira, formigamento na língua. Alguns desenvolvem câncer, todos têm os movimentos paralisados e não conseguem andar ou movimentar-se. Aos poucos, órgãos como o coração, rins e fígado vão apresentando deficiência.
A doença que acomete esses homens pode ser rápida e durar dias, porém, alguns ficam acamados por mais de duas décadas. Esse é o caso de Sebastião Bezerra, de 76 anos, pai de quatro filhos. Com o corpo trêmulo, atualmente ele não fala, não anda e já não consegue mais se comunicar. Ao seu lado, a esposa Maria Arlete Martins Bezerra, de 58 anos, conta que há 28 ele se encontra nesse estado. Sem apoio do poder público e já desenganada, ela diz saber o destino do marido.
“Ele chora muito, porque o corpo parou, mas a mente está sã. Grande parte do que estamos conversando aqui, ele consegue entender. Tem dias que ele não aguenta e chora mesmo. Eu me sinto de mãos atadas, porque a gente precisa se consultar na unidade de saúde pública, lá os médicos dizem que não podem passar mais nenhum medicamento, que tem que ser os mesmos que ele toma, então não adianta nada”, lamenta a esposa.
O casal vive hoje com a aposentaria de Sebastião, que chega a pouco mais de R$ 2 mil. Só de medicamentos, para diversas doenças que apresentou com o tempo, a família gasta mais de R$ 1 mil. Sobre o descaso das autoridades a esses ex-servidores, a mulher desabafa: “É difícil ver uma pessoa que deu a vida para a ajudar a população nesta situação, completamente abandonado”.
Raimundo Gomes, citado no início dessa matéria, permanece deitado há quatro meses. Ele apresenta problemas no coração e um rim está paralisando, além de outros sintomas. Durante entrevista ao G1, Raimundo grita de dor ao tentar mudar de posição, com um terço pendurado à cabeceira da cama e, entre lágrimas, tenta resumir o que sente sobre estar desamparado pelo Estado e diz saber que está no fim.
“Muita humilhação, a gente é muito humilhado. É aquele ditado, ‘Deus dá, Deus tira’. Nunca olharam para a gente durante todo esse tempo e nisso já se foram mais de 200 [funcionários]. Tenho certeza que não escapo, não saio mais dessa. Na próxima viagem, eu vou embora e já preparei meus filhos”, diz emocionado.
Casada há 44 anos, a esposa Maria Nazaré Soares da Silva, 67, diz que não dorme mais durante a noite. “Ele reclama de coceira nas costas, onde eles carregavam a carga do DDT. Começou a ter problemas em tudo. Quando a gente trata uma coisa, aparece outra. Dessa última vez, estivemos na UTI com ele, o próprio médico nos disse que era uma ‘sinuca de bico’. Um médico uma vez nos disse que o tóxico tinha tomado 60% do corpo dele”, relata.
Vivendo com a aposentadoria, a família hoje gasta cerca de R$ 1.800 entre remédios, plano de saúde e internações. A esposa afirma que o marido já proibiu os bisnetos de entrarem no quarto e parece se despedir dos filhos.
Quando equipe do G1 chegou à casa de Sebastião do Nascimento de Moraes, 74 anos, para a entrevista, o ex-agente estava sendo levado mais uma vez pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Cansado e sem poder falar, Raimundo entrou mais uma vez na ambulância, com os olhos lacrimejando. No dia anterior, ele viu a notícia sobre a morte de um dos companheiros. Segundo a esposa, Laura Pedro de Carvalho, de 67 anos, ele disse que seria o próximo.
“Ele, vendo a reportagem, disse que o último rapaz que morreu ficou ao lado dele quando passou 30 dias na UTI, em dezembro. Disse que seria o próximo e falou que o companheiro gritava de dor. É muito triste a pessoa estar ciente que espera em uma fila pela morte”, lamenta a companheira que está ao lado de Sebastião há 15 anos.
Na saída da ambulância, a tensão e tristeza tomam conta da casa de Sebastião. A mulher e os filhos veem, consternados, mais uma ida dele à unidade de saúde. “Ele se medica, dão alta, mas nunca adianta”, diz a esposa.
O ex-servidor teve que amputar o pé há dois anos. De acordo com a família, o sangue parou de circular e o pé de Sebastião começou a necrosar, primeiro os dedos, depois o pé. O enteado, Reginaldo Luiz de Carvalho Longhi, de 40 anos, se indigna ao ver o estado do padrasto.
“Um homem desse, que passou a vida trabalhando para o Estado, tem uma aposentadoria que é uma vergonha. Está explícito que esse pessoal está morrendo pelo uso do DDT e ninguém faz nada”, critica.
Com a perna amputada há três meses, Pelegrino Thomaz, 43, chama o pesticida de “maldito DDT”. Com mais condições, ele pôde viajar e diz ter tido a comprovação de um médico, em Vitória (ES), que seu corpo estava intoxicado com o veneno. “Um dia acordei e estava sem minha perna, minha única reação foi chorar. Mas, a gente tem que levantar a cabeça, não pode baixar a crista”, diz.
Pelegrino passou cerca de nove meses se tratando fora do Acre. Sobre o descaso do Estado em relação a extensa lista de mortes ligadas ao DDT, ele é enfático e relembra do trabalho de agente de endemias, em que foram pioneiros. “Fomos esquecidos, roubaram nossa identidade”.
‘DDT e Luta Pela Vida’
Aldo Moura trava uma verdadeira batalha há 14 anos para que os trabalhadores sejam reconhecidos e as famílias indenizadas pelo Estado. Aos 63 anos, ele viaja pelo país apresentado trabalhos e contando um pouco dos problemas de saúde que ele e os companheiros adquiriram em uma época em que a comunidade não dispunha de muitos mecanismos para tratar a saúde.
Antes de ser Sucam, o órgão era denominado Campanha de Erradicação da Malária (CEM), quando a maioria dos trabalhadores entraram para desenvolver o trabalho de agentes de endemias. Ele conta que na época, os servidores desenvolviam atividades até de Corpo de Bombeiros e polícia. “Se alguém se afogasse eram os soldados da borracha que iam mergulhar. Um crime acontecia nessas cidades mais afastadas e a gente que ia atrás do criminoso e trazia para as autoridades”, relembra.
Hoje, os funcionários da extinta Sucam que não estão aposentados são vinculados ao Ministério da Saúde. Porém, Aldo denuncia que o órgão nem mesmo os reconhece. Além disso, se diz completamente abandonado pelo Estado.
“Além do abandono, nós temos que sobreviver também com a discriminação. O que estamos pedindo não é favor, é um direito que temos porque doamos a nossa vida para que a malária não dizimasse famílias e mais famílias. Íamos para o mato sem data para voltar para a casa, muito dos servidores perderam suas mulheres”, conta.
Aldo diz ainda que muitos servidores morrem sem ao menos ter um lugar para ser velado. “O último que faleceu não tinha nem casa aqui para fazer o velório. É muito triste ver esses homens que eram ‘um trator’ hoje estarem completamente dependentes da família, esperando a morte chegar e o Poder Público vira as costas”, reclama.
O ex-servidor também sofre com os sintomas do uso do DDT, Aldo sente a língua dormente, coceira na pele e também muitas dores nas costas. Espírita, ele busca na religião uma forma de não temer a morte, pois ele acredita estar na lista. “Eu não tenho medo da morte, o que assusta é sofrer da forma como meus colegas estão sofrendo, sem assistência alguma”, diz.
Hoje, eles lutam por uma indenização de R$ 100 mil e buscam, do governo do Acre, uma unidade que dê preferência à exames e atendimento desses ex-servidores.
Ministério da Saúde diz que intoxicação não é comprovada
Em nota ao G1, o Ministério da Saúde alega que não há nenhum exame que comprove que as doenças desenvolvidas por esses homens sejam em decorrência do contato direto com o DDT e afirma que os servidores têm a assistência assegurada pelo Sistema Único de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, “a Justiça eximiu o poder público de realizar atendimento especial a esses servidores por não ter constatado a lesividade do DDT”.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde (Sesacre) reforçou o argumento do Ministério da Saúde e disse que como a intoxicação pelo DDT não foi comprovada não é possível oferecer um atendimento diferenciado aos ex-agentes.
‘Intoxicados pelos solventes do petróleo’, diz toxicologista
O toxicologista de São Paulo, Anthony Wong, explica que os ex-funcionários estão intoxicados, não só pelo contato com o DDT, mas pelos solventes à base de petróleo usados na mistura para obter o veneno. Segundo ele, os sintomas descritos são decorrentes do contato direto desses homens com essas substâncias químicas altamente tóxicas.
“Não dá para ligar esses sintomas ao DDT especificamente. O que acontece é que essas pessoas tinham contato direto com solventes de petróleo, como gasolina ou querosene, e se expuseram a grande quantidade de agrotóxicos. Existem mais de 400 substâncias diferentes, que são altamente tóxicas, cancerígenas e induzem problemas neurológicos, inclusive, com alteração de impulso nervoso que ocasiona a necrose ou a má distribuição de sangue para tecidos distantes”, esclarece.
Sobre o fato do não reconhecimento dessa intoxicação, o especialista explica que esses sintomas são resultado de uma gama de substância que os agentes foram expostos no local de trabalho, o que não retira a responsabilidade do poder público. Além disso, ele destaca outras condições da época, como a má nutrição e também o uso de álcool e cigarro aliados a esses produtos.
Wong afirma ainda que não existe um tratamento para a cura dessas doenças, mas pode-se dar um suporte para que essas pessoas tenham a expectativa de vida maior e não sofram com as dores constantes. “A pessoa deve tomar analgésicos e tomar complexo B, além de outras vitaminas, o que pode restaurar uma parte das funções nervosas que foram afetadas pelo solvente e outros agrotóxicos”, destaca.
As lesões causadas pelos produtos químicos, segundo o médico, são gravíssimas e fazem os afetados perderem a capacidade de falar e até raciocinar. “Essas pessoas, na verdade, são vítimas de todo esse conjunto de solventes e inseticidas”.
Na literatura, segundo Wong, não há muitos casos graves associados ao DDT, mas sim aos outros produtos usados para diluir o pó na época. “São sequelas de uma vida que não fizeram o controle adequado na segurança do trabalho. Os que trabalham em outro tipo de mineração também são exposto a isso e pagam esse preço. É revoltante que o poder público não ampare esses homem que sacrificaram suas vidas para construir o Brasil e hoje são deixados de lado”, finaliza.
Processo de ação civil pública do MPF-AC aguarda julgamento
O Ministério Público Federal no Acre impetrou ação civil pública em 2009, onde pedia a indenização e o atendimento pelo poder público aos ex-agentes da Sucam. A Justiça julgou a ação improcedente alegando que não havia provas suficientes da intoxicação desses homens pelo DDT. Em 2013, o órgão recorreu da decisão alegando que ” tanto a Funasa, na qualidade de sucessora da Sucam, quanto a União, em última análise, são as responsáveis pela exposição das vítimas ao DDT” e destaca que o poder público deve prestar assistência à população atingida pelo pesticida.
De acordo com o MPF-AC, a ação foi ajuizada após muitas tentativas de solução extrajudicial do caso, onde o poder público não reconhecia o direito dos agentes. Após a ação ainda foram tomadas algumas medidas.
Em um trecho do documento, o MPF ressalta ainda que “a documentação produzida com a inicial, no entender do MPF, revela o descaso do Estado para com os funcionários e ex-funcionários da Sucam/Funasa [Fundação Nacional de Saúde] contaminados pelo DDT, cujas moléstias decorrentes de possíveis intoxicações demandam um atenção especializada, por parte do poder público”.
O MPF-AC aguarda decisão da justiça sobre a ação, que está parada no Tribunal Regional Federal, da 1º região, desde agosto 2013.