Por Daniel Giovanaz
Do Brasil de Fato
“Hoje o Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar] é a nossa principal fonte de renda. “Sem contar que, tendo o programa aqui, muita gente da cidade vem comprar [alimentos]. Então, o pessoal não produz só para a merenda: produz para comer e fornece para a vizinhança. Então, sem o Pnae, o pessoal pararia de produzir.”
O relato de Carlos Finkler, assentado desde 1999 na Lapa (PR), a 70 km de Curitiba (PR), reflete a angústia de milhares de agricultores brasileiros com o avanço do Projeto de Lei (PL) 3292/20.
Aprovado na Câmara dos Deputados na noite de quinta-feira (6), o PL muda as regras de aquisição de alimentos para merenda escolar, retirando a prioridade de assentados da reforma agrária, quilombolas, indígenas e ribeirinhos.
Organizações da sociedade civil publicaram uma nota pública e lançaram uma petição contra as alterações no programa em março. Até o momento, 28 mil pessoas já assinaram o texto.
“O PL 3.292 alija ainda mais estes povos do acesso aos mercados, pois os obriga a disputar com produtores já mais estruturados, excluindo-os do processo de fornecimento ao Pnae em suas localidades. Isso representa um retrocesso do ponto de vista da garantia de direitos destes povos, que já vêm perdendo direitos territoriais e acesso a políticas públicas”, diz um trecho da nota.
A importância do Pnae
No Assentamento Contestado, onde vive Finkler, 70 famílias recebem R$ 20 mil por ano do Estado para fornecer alimentos para a merenda escolar por meio da Cooperativa Terra Livre, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“Se contar todos os sócios da cooperativa que não moram no assentamento, são mais de 200 famílias que recebem esse valor anual”, observa o assentado.
O projeto é de autoria do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), ex-líder do governo na Câmara e apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A determinação de que 30% dos alimentos da merenda sejam oriundos da agricultura familiar foi mantida. Para entrar em vigor, o texto depende da apreciação do Senado.
“Nosso pessoal entrega para o Pnae produtos orgânicos. São mais de 30 itens, entre hortaliças, folhosos, tubérculos, frutas, citros. Em torno de 20, 30 toneladas a cada quinze dias. Nada de agrotóxico, nem adubo químico industrial”, ressalta Finkler.
“O Pnae beneficia nós, aqui do campo, e beneficia as famílias [da área urbana] que estão em situação de vulnerabilidade, principalmente nesse período de pandemia”, completa.
Aos 62 anos, o assentado não tem dúvidas dos objetivos do PL.
“É para enfraquecer a luta da reforma agrária, a luta da agroecologia, e para beneficiar o agronegócio. Se eles tirarem de nós a prioridade, as crianças da cidade vão comer produtos do agronegócio, a base de soja, alimentação contaminada de agrotóxicos”, alerta.
Efeitos colaterais
Carlos Finkler teme que a aprovação do projeto no Senado agrave ainda mais o êxodo rural no Brasil. Entre 1963 e 2013, o fluxo de brasileiros do campo para a cidade cresceu 45,3%.
“Nos últimos 170 anos, a prioridade que o Estado deu ao agronegócio quebrou os camponeses. Os resultados estão aí: as favelas cresceram no país afora, a violência não para de crescer na periferia. Mesmo a covid-19, nós podemos ver que mata mais na cidade do que no campo, porque aqui tem mais espaço, é possível manter distanciamento”, finaliza.
Segundo dados divulgados em outubro pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e pelo Fórum Brasileiro pela Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN), as compras de alimentos da agricultura familiar pelo Pnae caíram 44% na pandemia.
Mesmo antes da crise sanitária e do fechamento das escolas, as comunidades rurais já sentiam no bolso os efeitos do governo Bolsonaro. Com queda de 95% em 8 anos, a aquisição de alimentos pelo Estado caiu de 297 mil toneladas em 2012 para 14 mil em 2019.
Edição: Leandro Melito