Agronegócio desobedece os principais pontos da legislação sobre agrotóxicos

A ilegalidade está na pesquisa, experimentação, produção, embalagem, rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, publicidade e utilização desses produtos. Outdoors anunciando todo tipo de agrotóxico – o que é ilegal – é comum nas estradas brasileiras, conforme o MP do RS

um baita.jpeg Por Cida de Oliveira

Da RBA

A Constituição e a Lei Federal 7.802/89, que disciplina a pesquisa, a experimentação, produção, embalagem, rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, publicidade, utilização, fiscalização e controle dos agrotóxicos são desrespeitadas pela agricultura nacional. A denúncia é do promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul em Catuípe, Nilton Kasctin dos Santos. Com formação em Direito e especialização em Direito Comunitário pela Escola Superior do Ministério Público, o ex-delegado da Polícia Federal trocou a PF pela defesa do meio ambiente e atua também como conferencista e articulista em diversas publicações.

 De acordo com o promotor, a desobediência já começa com a prescrição de venenos por  agrônomos ou técnicos agrícolas que nem sequer examinaram a lavoura para conhecer suas características e necessidades. Tal procedimento consta do artigo 15º da Lei 7.802/89 (Lei dos Agrotóxicos). A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão para quem descumprir.

 “É comum esses profissionais assinarem receituários sem ter visitado e diagnosticado a lavoura. Como um médico examina o paciente para identificar a doença e receitar o remédio, o agrônomo deve examinar a lavoura. Só então poderá decidir se há necessidade do uso de veneno e qual o tipo”, compara.

 

 Porém, isso normalmente não ocorre. “O agricultor vai direto à ‘farmácia’ (revenda), já decidido a comprar o veneno que será aplicado da forma e no momento que bem entender. Às vezes, quem entrega a receita já assinada é o balconista da loja de agrotóxico. Assim, a receita, que deveria ser o principal instrumento para controlar a circulação desses produtos, não passa de uma farsa.”

 
Propaganda irregular

Outro grande problema é a publicidade dos venenos. A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 220, parágrafo 4º, que a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais. Tais restrições foram estabelecidas também pelas leis federais 9.294/96 – sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas – e ainda pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº  8.078/90).

Santos entende que a legislação é cumprida à risca quando se trata de medicamentos, bebidas alcoólicas e tabaco. Mas em relação aos agrotóxicos, não há obediência a qualquer dispositivo legal. A propaganda é completamente livre. Está na televisão, no rádio, nos jornais, na internet, e até mesmo em cartazes, placas, faixas e outdoors.

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Outro Outdoors anunciando todo tipo de agrotóxico 

 

“Só para exemplificar, as margens das estradas do Brasil inteiro estão tomadas de placas com anúncios de agrotóxicos e sementes transgênicas. Até no espaço público, reservado à colocação de sinais de trânsito eles podem ser vistos. E toda forma de propaganda mencionada, da maneira como veiculada no Brasil, constitui crime contra as relações de consumo, na medida em que caracteriza publicidade enganosa (arts. 66 e 67 do CDC)”, afirma.

Para o promotor, a culpa não é apenas das empresas interessadas, mas também das autoridades, que nada fazem para coibir anunciantes e punir os que atuam livremente, com conhecimento das autoridades, que nada fazem. “O que é lamentável. A propaganda irregular de agrotóxico precisa ser vista como algo grave, uma vez que influencia toda a coletividade a banalizar o perigo dos venenos, a não ver problema em encher de agrotóxico a terra, o ar, a água e nossa mesa.”

Enquanto isso, conforme conta, a ampla maioria dos plantadores de soja, trigo, arroz, aveia, milho, feijão, uva, melancia, abacaxi, verduras e demais alimentos segue aplicando de forma ilegal os mais variados tipos de venenos perigosos. “Fazem quando querem, como querem e na quantidade que querem, sem serem incomodados por quem quer que seja no sentido de pelo menos cumprir a legislação vigente”.

 Alienação

Para o promotor, a sociedade brasileira está em grande parte alienada em relação aos agrotóxicos – o que se deve principalmente à fragilidade do sistema educacional, sem compromisso com o desenvolvimento de uma consciência mais crítica.

 “Nem as tais campanhas de ‘conscientização’ da população e dos agricultores sobre o perigo dos agrotóxicos funcionam mais. É lógico, uma nação que figura no 88º lugar no ranking mundial da educação é incapaz de qualquer processo de transformação  para melhor; a tendência é piorar”, lamenta.

“Desses raros processos e inquéritos, 99% foram abertos pelo próprio do Ministério Público, Polícia Ambiental ou alguma organização. A sociedade brasileira está completamente alheia a esse grave problema que é de todos”.

Para ele, isso justifica as pouquíssimas denúncias envolvendo agrotóxicos, em geral relacionadas apenas a prejuízo financeiro. Ou seja, as pessoas só vão à polícia ou ao Ministério Público denunciar quando o veneno da lavoura do vizinho danificou sua plantação, seus animais, ou quando alguém da família sofreu intoxicação aguda.

Num cenário assim tão favorável, a indústria e o comércio de agrotóxicos nem precisam se esforçar no assédio aos produtores. Isso porque, conforme o promotor, o agronegócio já é absolutamente dependente do poder econômico das megacorporações transnacionais detentoras das marcas de sementes, adubos e venenos agrícolas.

Todos os produtores rurais brasileiros, diz, trabalham como num sistema integrado de produção a exemplo do que ocorre com criadores de frango e suínos para os grandes frigoríficos.

Na prática, trabalham para essas empresas multinacionais já que nenhum produtor possui insumos próprios (se guardar a semente, ela não nasce, é estéril), nem podem adquirir semente, adubo químico ou veneno de outro eventual fornecedor.

“Todos dependem absolutamente da Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta, FMC, Du Pont, Dow e mais duas ou três. A curto ou a médio prazo nada pode ser feito para minar esse quadro sombrio de dependência econômica e tecnológica do Brasil em relação a esse aspecto do capital internacional. Isso equivale a dizer que não só nossa segurança alimentar desapareceu por completo, como também nossa soberania nacional vem se debilitando progressivamente. E de forma acelerada”.

 Cruéis, os testes de agrotóxicos torturam animais, mas são incapazes de mensurar seu real perigo à saúde humana e ao meio ambiente

 Feitos em animais com metabolismo e sistema imunológico diferente dos seres humanos, e que não representam a complexidade dos ecossistemas, os testes não conseguem identificar o real espectro de ação dos venenos.

O Teste Draize consiste em aplicar a substância química nos olhos ou na pele (raspada) de animais para medir a toxicidade. Principalmente coelhos (porque têm olhos grandes e salientes), são amarrados em um instrumento fixo, ficando apenas com a cabeça para fora. O veneno a ser testado é pingado de quando em quando dentro dos olhos (mantidos abertos com grampos ou fitas adesivas).

Por estar preso e não poder fechar os olhos ou coçar o local da agressão, o animal apenas grita de dor, chegando até mesmo a fraturar o pescoço na tentativa de escapar. O procedimento dura vários dias, até que o olho vire uma crosta infecciosa, acompanhada de cegueira completa. “Tudo para ‘saber’ o grau de toxicidade da substância a ser lançada no mercado. Ora, desse jeito até mesmo água potável causaria danos no olho”, diz o promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul em Catuípe, Nilton Kasctin dos Santos.

Pelo método LD50, o agrotóxico é ministrado (via oral ou venosa) aos poucos a um grupo de animais (cães, macacos, coelhos, ratos etc.), até que morram 50%. Todo o grupo, normalmente em torno de 200 indivíduos, sofre longo processo de tortura, definhando lentamente até a morte. Essa forma cruel de experiência científica foi inventada em 1927, e até hoje é utilizada em larga escala pela indústria química.

De acordo com Santos, os testes de laboratório são feitos com um tipo de agrotóxico por vez, não levando em conta que nas plantações são aplicados vários tipos de venenos diferentes, misturados ou uns após os outros, em intervalos curtos ou médios, de maneira que resíduos de vários tipos de venenos interagem entre si e com o solo, com o ar, com a água e no corpo dos organismos vivos. Portanto, é completamente impossível identificar em laboratório as consequências da ação conjunta de diferentes tipos de agrotóxicos para o meio ambiente e a saúde humana.

Esses testes em animais são concluídos em períodos extremamente curtos, impossibilitando qualquer certeza sobre efeitos crônicos derivados de exposições ou contatos prolongados com agrotóxicos. Observe-se que a cada evento de ataque intenso de pragas ou doenças aparecem no mercado, de uma hora para outra, dezenas de agrotóxicos novos.

“As conclusões dessas experiências não apontam antídotos para casos de intoxicação acidental. Os testes são realizados pelo próprio fabricante do veneno, cujo interesse único e exclusivo é lucrar com a venda do produto”, diz o promotor.

Ele destaca ainda que essas experiências sacrificam dos animais sem trazer utilidade para a proteção da saúde humana. A literatura científica na área de toxicologia mostra que os resultados de testes Draize nunca são utilizados por médicos, que se orientam a partir de experiências de casos reais com seres humanos.

Esses testes são realizados para defender os interesses econômicos do fabricante. “A lei não obriga a utilização de animais para testes científicos. Mas essa metodologia ultrapassada, inventada há quase um século, é a maneira mais eficaz de o fabricante e o comerciante serem inocentados em processos judiciais por intoxicação humana ou dano ambiental. É só provar que o veneno foi testado antes da colocação no mercado, que a Justiça sempre julga em favor das empresas que fabricam e comercializam o agrotóxico. A ‘culpa’ passa a ser de quem aplica o veneno”, diz Santos.

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