Por Mara Gama
Colunista do UOL
“Con nuestro pan no!”, reagiram organizações de defesa do ambiente e setores da indústria de alimentos argentinos em outubro de 2020, quando houve a aprovação pelos órgãos técnicos do país vizinho para cultivo de um trigo transgênico com vistas à exportação para o Brasil. O Brasil é um grande consumidor do trigo argentino – quase 74% do trigo que o Brasil importou em 2020 veio da Argentina, segundo o Sinditrigo.
Agora, parte da operação casada para cultivar na Argentina e vender para consumo no Brasil o trigo transgênico está na boca da caçapa. No próximo dia 10 de junho, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, CTNBio, do Ministério da Ciência e Tecnologia, analisa, em sua 242ª reunião ordinária, como primeiro item da pauta uma liberação comercial para a Tropical Melhoramento Genético – TMG, no processo nº 01250.014650/2019-71.
Trata-se da “liberação comercial de trigo geneticamente modificado para aumento de produtividade em situações e ambientes de baixa disponibilidade hídrica e resistente ao glufosinato, para uso exclusivo em alimentos, rações ou produtos derivados ou processados”. Em novembro, duas das subcomissões da CTNBio que analisam os pedidos de liberação deferiram o pedido e duas outras o colocaram em diligência.
Em seu site, a TMG lista licenciamentos para algodão e soja no Brasil. Consta também a parceria com a argentina Bioceres, que comercializa a modalidade de trigo IND-ØØ412-7, também chamado de HaHB4. A subsidiária Bioceres Crop Solutions Corp passou a ser listada na bolsa americana Nasdaq no último dia 27 de abril.
A Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e mais 200 entidades entre movimentos sociais e comércios e indústria se colocam contra a aprovação e elencam 13 motivos para que o Brasil não aprove a importação e o uso, muito menos o cultivo do trigo transgênico no país. Eles criaram o manifesto “No nosso pão, não!” que prometem entregar à CTNBio e ao Ministério Público Federal antes da votação do dia 10
Entre os 13 motivos listados pela campanha estão o de que o uso do transgênico aumentará o consumo de agrotóxicos, o fato de o glufosinato de amônio ser um herbicida ainda mais tóxico que o glifosato usado no milho e na soja transgênicos, a possibilidade de contaminação de toda a cadeia alimentar com os transgênicos e o fato de não ter sido garantida a participação da sociedade civil no debate sobre os efeitos do uso do glufosinato de amônio nessa modalidade de trigo.
Ex-membro do CTNBio em duas ocasiões (de 2003 a 2008 e de 2015 a 2016), o professor da Universidade Federal de Santa Catarina Rubens Onofre Nodari, engenheiro agrônomo e doutor em genética e melhoramento de plantas, analisou o dossiê de pedido de aprovação, participou de audiência pública em 2020 e considera que falta informação para aprovar ou desaprovar o produto. “Não há avaliação de risco. Não fizeram análise bioquímica”, diz. “Nós seremos cobaias”, alerta.
A seguir, trechos da entrevista de Rubens Nodari à coluna:
Ecoa – Quais as chances de o trigo transgênico ser aprovado para uso no Brasil na reunião do CTNBio do dia 10 de junho?
Rubens Onofre Nodari – Nos últimos anos, depois da Lei de Biossegurança, a CTNBio revisou normas para flexibilizar aprovações. O caso do trigo se encaixaria. O movimento que a maioria dos integrantes da CTNBio deu nos últimos dez anos é para as aprovações cada vez mais facilitadas, para gerar menos controvérsia jurídica. Um exemplo disso é que, numa normativa que era a 05 de 2006, 2007 ou 2008 eram exigidos estudos de alergenicidade em organismos vivos. Agora, a nova norma diz que que os estudos de alergenicidade podem ser “in sílico” [por simulação computacional]. O que é isso? É só comparar proteínas que eles detectarem numa nova variedade transgênica com as proteínas alergênicas conhecidas. Ou seja, se não há coincidência com um alergênico, então o trigo não é considerado alergênico. Estou dando apenas um exemplo de flexibilização de norma porque, nesse dossiê de trigo argentino que foi submetido a CTNBio, o fabricante diz que eles fizeram análise in sílico. Eles não fizeram nenhuma análise bioquímica e nem uma análise em animais. Então, nós humanos seremos cobaias. Vejo como alta a probabilidade de aprovação.
O senhor disse que há um pedido de liberação de plantio também
Então, há um problema que não sei como vai ser resolvido. O primeiro pedido para esse trigo era para importação – e uso, naturalmente. Mas, no final do processo, a empresa mandou uma correspondência dizendo que também tinha interesse da liberação para o meio ambiente, o que significa cultivo. Então, nem sabemos se a comissão vai aprovar só a liberação para uso ou se também vai liberar para cultivo.
Quais os principais riscos para a saúde e para a economia?
O problema é que são riscos desconhecidos. Tradicionalmente os dossiês trazem mais estudos. Nesse caso não temos nenhum estudo bioquímico ou em vivos de alergenicidade. O segundo problema é que só há dois estudos com animais, que são absolutamente insuficientes. Um deles é um estudo de 14 dias em ratos e um de 40 dias em aves. Ambos são de curta duração. Tradicionalmente, os ensaios com alimentação em animais são de três meses, porque estudos de longa duração é que mostram problemas graves. Na minha experiência como membro da comissão, esse [dossiê] do trigo é o mais pobre em quantidade e qualidade de estudos relacionados a avaliação de risco. Não tem. Além disso, esse trigo pode contaminar a s outras variedades de trigo, como aconteceu com a soja. É uma planta de autofecundação – eles dizem que ela não tem fecundação cruzada, mas ela tem uma pequena taxa. A soja também não tinha e contaminou todas as variedades brasileiras. Um terceiro ponto é que a quantidade de DNA que foi inserida é o maior de todos os transgênicos que eu já conheci. Existem variedades de soja que têm 4 mil ou 5 mil pares de bases. Esse trigo tem 62 mil pares de bases. Um dos genes inseridos dá resistência ao herbicida glufosinato de amônia. Então, quem vai produzir, pode usar o glufosinato de amônia. O que vai ocorrer? A gente não sabe! Eu vou comer pão, massa, biscoito, pizza com resíduo de herbicida? Porque o trigo atual, teoricamente, não é para ter resíduo de herbicida, porque, se for usado herbicida no trigo tradicional, ele morre.
Há algo a fazer para evitar esse risco?
O pão, a farinha de trigo, dificilmente em algum dia de nossa vida a gente não usa alguma parte de farinha de trigo. Então, nós vamos ser expostos constantemente a esse risco. Diferentemente de uma soja transgênica que a gente não se alimenta dela. A farinha de trigo está em centenas de pratos, em centenas de produtos e nós vamos ter uma exposição diária. Então, acho que a sociedade deveria ser consultada antes desse produto ser aprovado. Você vai querer se expor diariamente a comer um trigo com resíduo de herbicida transgênico que não tem estudo suficiente para ser aprovado? Eles fizeram uma consulta pública, mal divulgada, ouviram algumas pessoas. Me inscrevi para falar. Me deram 3 minutos. Ou seja, a sociedade como um todo ainda não foi ouvida. Teria de ser feito um debate maior com a sociedade, por se tratar de um alimento básico.
No trâmite usual desse tipo de aprovação há alguma outra possibilidade de participação social além da audiência pública?
Não existe. A lei deu poderes absolutos para o CTNBio e a sociedade está totalmente fora. Durante muito tempo, membros da comissão colocavam as polêmicas na mesa. Com o tempo, os governantes já não nomeiam pessoas que têm alguma restrição, que têm críticas, que exigem mais estudos. Durante meu período lá, meu princípio fundamental era se não tivesse estudo, eu pedia. Porque eu não posso aprovar uma coisa que não tenha estudo e nem desaprovar. Ou seja, a ausência de análise científica não permite que se diga nem sim nem não. O estudo serve para tomar decisão. Sem informação não dá. Nesse caso, não existe informação científica que permita uma análise de risco adequada.
A Argentina já está cultivando esse trigo?
A Argentina aprovou condicionalmente se o Brasil aprovasse. Os argentinos consomem mais derivados de farinha de trigo do que nós. Eles produzem um trigo de alta qualidade e cerca de 80% do trigo que o Brasil importa vem da Argentina. Para evitar um problema interno lá, porque a população consome muito, a comissão técnica deles aprovou para exportação. Caso o Brasil, que é um importador, aprovasse, eles iam permitir o cultivo. E aí a empresa [solicitante] aportou, no dossiê, um sistema de rastreabilidade dos grãos cultivados, colhidos e transportados até fora da Argentina. Tem um esquema montado que eles cuidariam para não escapar nada da produção, não escapar no transporte, até chegar no limite de outro país. Dalí em diante é probl ema de outro país. Ou seja, a ideia deles foi produzir para exportar para o Brasil. Não tenho informação se já chegaram a semear. Em entrevistas, o presidente andou declarando que, se o Brasil aprovasse, eles poderiam produzir ainda a partir desse ano.
E, como o senhor disse, existe esse outro pedido para cultivo no Brasil
Sim. No processo, a empresa que detém os direitos se interessou por obter possibilidade de cultivar no Brasil também. Na Argentina, o setor industrial argentino. Porque eles têm dificuldade de fazer a segregação. Como vai fazer a segregação no moinho? Então, o setor industrial argentino disse: olha, como nós não podemos fazer a segregação e não sabemos a reação dos consumidores. Nós não queremos esse trigo aqui na Argentina. Também aqui no Brasil, a Associação Brasileira da Indústria de Panificação (Abip), A Associação Brasileira de Indústrias de Biscoitos, Massas alimentícias, Pães e Bolos Industrializados (Abimap) e a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abit rigo) se posicionaram contra a aprovação do trigo geneticamente modificado na audiência pública. O presidente da Abitrigo disse, na audiência pública, que se o Brasil autorizar o trigo transgênico argentino eles vão comprar de outros lugares do mundo e não da Argentina, porque eles não têm como fazer a segregação e não querem expor a população brasileira a um risco não conhecido em sua plenitude.
Se for liberada e importação, o consumo do trigo transgênico seria uma exclusividade brasileira?
Seria. Não existe em outros países. Empresas tentaram cultivar nos Estados Unidos há muitos anos, mas não prosperou. Os próprios produtores de trigo entraram com uma ação alegando que ia causar desagregação social, pois grupo de produtores ia produzir e outro não, e o produto poderia se misturar nas máquinas e criar problemas de coesão social. Foi no Estado de Washington. Na Europa também não prosperou, porque também existe uma alimentação forte com as farinhas de trigo. Não existe em nenhum outro lugar do mundo o trigo transgênico. Seríamos os consumidores pioneiros. O trigo que eles não querem consumir lá viria para cá.