Artigo | Nossa comida não pode depender do mercado

Já passou da hora de criarmos um sistema mais sólido para nos alimentarmos

Por Jan Douwe van der Ploeg*
Da Universidade Agrícola da China, em Pequim

O surto e a rápida disseminação do coronavírus são um evento dramático, ainda mais potencializado por uma profunda crise econômica global. A pandemia não é a causa dessa crise. Não existe uma correlação direta entre a paralisação das atividades e a estagnação econômica.

Pelo contrário, as causas estão na macroestrutura . A pandemia foi um catalisador: desencadeou desenvolvimentos que já estavam incorporados na economia global e em seu desenvolvimento posterior.

Outros eventos dramáticos, como uma segunda onda do virus, uma guerra localizada, ou uma aceleração abrupta das mudanças climáticas, podem causar crises semelhantes em um futuro próximo. Um “retorno ao normal” não é, portanto, óbvio. É necessária uma mudança radical na e da economia capitalista. Ilustrarei isso com a agricultura e o suprimento de alimentos: um setor que está com sérios problemas em todo o mundo.

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Nas últimas décadas, as exportações e importações de alimentos aumentaram simultaneamente na maioria dos países. O comercio internacional agrícola atendeu unicamente as necessidades de lucro das grandes corporações, do controle dos mercados de alimentos e de commodities agrícolas.

A Holanda por exemplo, exporta grandes quantidades de alimentos, mas ao mesmo tempo precisa importar muitos produtos agrícolas (como até grãos para fazer seu pão de cada dia!). Na America Latina, por exemplo os países estão muito longe de serem auto-suficientes. Mas exportam todo tipo de produtos além de grãos, como aspargos, frutas, limão, etc.

Um exemplo holandês do modelo perverso

Os setores agrícolas estão cada vez mais orientados para as exportações. Enquanto alimentos para demanda doméstica são importados. Isso criou um emaranhado de dependências mútuas, no qual um problema de produção local repercute em quase todos os cantos do mundo.

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Por exemplo, os restaurantes na Itália fecharam cedo durante a pandemia. Isso interrompeu a exportação de vitela (necessária para “saltimbocca e vitello al tonno”, pratos italianos populares) da Holanda para a Itália.

O Grupo VanDrie, um importante centro de compra, processamento e comercialização de novilhos foi forçado a reduzir suas atividades. Os produtores de leite holandeses não conseguiram mais se livrar de seus novilhos e a importação dos animais por parte da Alemanha, Irlanda e Europa Oriental (800 mil animais por ano) também parou. Um exemplo de problema local inicial traduzido para muitos países e atores econômicos.

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Os preços dos produtos agrícolas na Europa estão caindo e a renda dos agricultores também, os motoristas e trabalhadores da indústria de alimentos também estão sob pressão e ninguém sabe para onde levar agora os novilhos. Similarmente, outros processos de avalanche também ocorreram com flores ornamentais, batatas, carne, arroz e grãos.

Além do amplo entrelaçamento de atividades econômicas, a dependência do capital financeiro nas atividades produtivas e a posição precária dos trabalhadores na agricultura e na indústria de alimentos contribuem para o aumento da vulnerabilidade.

Até recentemente, uma fazenda autônoma era isenta de dívidas. Mas a agricultura holandesa está agora contraindo uma enorme dívida, que a deixa vulnerável. Grandes fazendas com grandes volumes produzidos estão enfrentando problemas com as fortes flutuações de preços atuais.

A agricultura está inseparável da agroindústria

O mesmo vale para as indústrias de processamento de alimentos. As altas dívidas e a subordinação aos interesses dos acionistas que só querem lucro, não alimentos, intensificaram a vulnerabilidade. A ausência de capacidade financeira própria e as entregas “just-in-time”, que eliminou os estoques , levou a um emaranhado impressionante de inter-dependências.

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No comércio, o suprimento de matérias-primas e insumos foi convertido em operações financeiras complexas que exigem seguro e crédito para importação e exportação. No entanto, se o comércio de um produto se tornar arriscado, o capital financeiro tende a se distanciar, de modo que todo o sistema produtivo passa a parar.

Aumenta então a precarização dos trabalhadores assalariados nesse sistema de produção. No passado, moradias precárias, baixos rendimentos, más condições de trabalho e falta de higiene eram típicas daqueles que estavam à margem da economia. Agora, diz respeito aos trabalhadores que estão no centro da economia alimentar e a mantêm em funcionamento, tanto nos frigoríficos ou quando colhem nossos vegetais e frutas.

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Eles são, em certo sentido, o calcanhar de Aquiles do sistema alimentar. E irônico o suficiente, justamente por isso, se transformaram como trabalhadores migrantes, temporários, também uma fonte de maior disseminação do coronavírus entre as regiões, porque ninguém os protege em seus locais de trabalho.

O futuro terá que ser mudado

A vulnerabilidade é uma característica do sistema mundial da agricultura e do suprimento de alimentos. Uma mudança para sistemas resilientes é extremamente necessária. Pensar numa agricultura que produza com uma base autônoma de recursos, para que um elevado grau de dívida e dependência possa ser evitado e os ciclos no nível da empresa possam recuperar seu lugar.

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Devemos portanto, construir uma nova soberania alimentar. Os mercados locais ajudam agricultores e os alimentos devem circular por cadeias curtas. A soberania alimentar é uma necessidade para garantir um certo equilíbrio entre produção e consumo a nível local, regional e nacional .

Finalmente, é mais do que tempo de restaurar a políticas publicas agrícolas, para que o Estado e os agricultores administrem o suprimento de alimentos sem depender mais do mercado.

Jan Douwe van der Ploeg é pesquisador agrário da Holanda, e professor adjunto da Universidade Agrícola da China, em Pequim.
 

Edição: Rodrigo Durão Coelho e Leandro Melito

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