Chuva de agrotóxicos expulsa pequenos agricultores e polui águas

Assentados da Gleba Novo Horizonte tiveram de deixar suas terras por causa da intensa pulverização de pesticidas

*Esta reportagem é parte do Projeto Amazônia sem Lei, da Agência Pública, que investiga a violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. Leia mais em apublica.org. 

“A senhora pode aguentar tudo, resistir à pressão de todo o tipo, mas quero ver aguentar o veneno”, ouviu Valdiva de Oliveira e Silva de um funcionário de um grileiro que queria expulsá-la de seu lote no assentamento Gleba Novo Horizonte, em Confresa, Mato Grosso. A previsão foi certeira. Conhecida por suportar ameaças e agressões de capangas, a agricultora acabou vencida pelos agrotóxicos que destruíram as roças e expulsaram a comunidade de 80 famílias. “Era avião o dia inteiro, jogando inseticida, herbicida. Eles usavam de estratégia, minha área virou ponto de manobra do avião, ele fazia o retorno em cima da minha terra. O vento puxava o veneno e vinha uma chuva em cima de nós”, relata.

Valdiva Silva, a última a deixar a comunidade, foi assentada em 2015 na Gleba Independente I, também em Confresa, mas não conseguiu fugir do veneno. A Fazenda Luta, a maior produtora de soja transgênica da região, fica a apenas 4 quilômetros de sua casa. “Daqui a dez anos esses assentamentos onde estamos, onde tiver terra plana que dá para virar soja, vai virar. Não sei como vamos viver. Aqui já sentimos os efeitos, não sei se é da Luta, se é da fazenda que fica aqui atrás. Mas a mandioca embola o olho todinho, fica empedradinho. As plantas murcham, quebram, endurecem e não voltam mais”, enumera.


Cerca de 90% do território de Confresa é formado por assentamentos nos quais vivem quase 6 mil famílias, que movimentam 3 milhões de reais por ano com sua produção – a soja dos grandes empreendimentos vai para exportação. A renda dos assentados, “que faz a cidade girar”, nas palavras do secretário municipal de Agricultura, Meio Ambiente e Turismo, Iranilto de Matos Rodrigues, está ameaçada pelos agrotóxicos. Segundo ele, o caso da Fazenda Luta preocupa ainda mais porque ela fica “quase dentro” da sede do município e “na divisa com os índios” – a Terra Indígena Urubu Branco, um grande retângulo de floresta que o povo Apyãwa, conhecido como Tapirapé, luta para preservar. Os indígenas se queixam principalmente da poluição dos ribeirões, que passam pela fazenda antes de se juntarem no Córrego da Onça, no território deles.

Assentados da Gleba Novo Horizonte tiveram de deixar suas terras por causa da intensa pulverização de pesticidas

O padre Alex Venâncio Gonçalves, coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Alto Araguaia, faz uma denúncia ainda mais grave: a pulverização tem sido utilizada para expulsar os agricultores familiares, como aconteceu com Valdiva. “Num primeiro momento, foi a luta armada, pistoleiros. Hoje temos uma guerra química: as derivas de veneno (o agrotóxico que extravasa a área de aplicação) cumprem essa função, porque vão acabando com as produções dos camponeses, gerando uma situação de empobrecimento e pressionando-os a negociar seus lotes e sair”, diz.

A engenheira agrônoma Polyana Rafaela Ramos, professora do Instituto Federal de Mato Grosso, alerta para a gravidade da situação. “Já ouvi muitos casos, a maioria dos assentamentos menores, que têm terras boas para o agronegócio. Eles ameaçam de forma velada ou diretamente com o veneno, vão comprando propriedades ao redor, e quem aguenta?”

Em janeiro de 2015, três agricultores registraram um Boletim de Ocorrência na Polícia Civil de Confresa contra a Fazenda Luta por abandono de substâncias tóxicas nocivas ao meio ambiente, delito previsto na Lei dos Crimes Ambientais. Argildo Jornooki, conhecido como Russo por sua ascendência eslava, reclamava a perda da plantação de frutas e hortaliças que há 32 anos cultivava no lote de 13 hectares a 800 metros da sede da Luta. O apicultor Silvestre, seu irmão e vizinho, também atribuía à deriva do veneno a morte das abelhas e a drástica redução da produção do mel. José Valdir Duarte trazia o prejuízo no corpo, com problemas de pele causados pela pulverização aérea.

Valdiva Silva: “Era avião o dia inteiro”

O veneno passou a afetá-los em 2013, quando a Fazenda Luta iniciou o plantio de soja nos 40 mil hectares comprados da antiga Destilaria Gameleira. No ano seguinte, Russo, Silvestre e outros mais de 40 produtores do assentamento foram à fazenda reclamar da deriva dos agrotóxicos. O gerente, Fernando Luiz Canan, genro do proprietário Vítor Elísio Poltronieri, fez então um acordo informal com os agricultores. Russo diz ter recebido 40 mil reais (embora sua renda anual fosse de 100 mil) e o irmão, 2 mil reais, além da promessa de que a deriva dos venenos seria controlada. Mas no ano seguinte o prejuízo foi ainda maior, como vem ocorrendo até agora, dizem os agricultores.

Entre as propriedades que detinha na região, antes de comprar as terras da Gameleira, o catarinense Vítor era dono da madeireira Poltronieri Madeiras, no município de Sinop, e de uma transportadora, processada em 2009 e condenada em primeira instância por transporte irregular de madeira (o empresário recorreu e o processo está na Turma Recursal Única de Cuiabá). Poltronieri também foi alvo do Ministério do Meio Ambiente, acusado de desmatar 2.838,58 hectares no município de Ipiranga do Norte. Condenado por dano ambiental em primeira instância, ele recorreu e o processo está suspenso. A família tem fazendas em Ipiranga e em Sinop, onde seu genro e gerente, Fernando Canan, foi condenado, em outubro do ano passado, em um processo administrativo por desmatar mais de 500 hectares de vegetação nativa.

 

A Pública teve acesso a uma perícia do Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso, de fevereiro de 2015, que constatou a “utilização de agrotóxicos em desacordo com as recomendações constantes”, em receitas assinadas pelo agrônomo responsável pela Fazenda Luta. A empresa não atendeu às tentativas de contato presencial, telefônico e por e-mail da Pública, que também não conseguiu falar com o proprietário nem com o gerente. Em declaração anexada em ação civil pública aberta pelo Ministério Público Federal em decorrência das denúncias dos agricultores, o advogado da Fazenda Luta, Mário Sérgio dos Santos Ferreira Júnior, afirma que as aplicações feitas em torno dos agricultores se limitaram a fungicidas, e não herbicidas, o que impossibilitaria os danos alegados.

Em 2017, os agricultores contrataram um advogado para tentar recuperar o prejuízo. Em maio deste ano, a investigação chegou ao gabinete do juiz da comarca de Porto Alegre do Norte, mas provavelmente o caso será arquivado, como recomenda uma minuta do Ministério Público do Estado de Mato Grosso anexada ao processo consultado pela Pública no Fórum de Porto Alegre do Norte. A justificativa do MP estadual é que não “se vislumbra comprovação da materialidade delitiva”, já que não houve laudo pericial para atestar as denúncias. Pela mesma razão, o inquérito civil sobre o caso, aberto paralelamente ao inquérito policial na 1a Promotoria de Justiça Cível de Porto Alegre do Norte, foi arquivado em maio deste ano. O promotor Marcelo Rodrigues Silva indicou a ausência de laudo dos prejuízos ambientais e do auto de infração e afirmou que, “diante do lapso temporal decorrido”, qualquer tentativa de apuração dos fatos seria “frustrada”.

Em Mato Grosso, a exposição aos agrotóxicos é quase dez vezes maior do que na média nacional

No processo consultado pela Pública há, porém, laudos periciais feitos pelo Indea, comprovando sintomas de contaminação nas plantas dos agricultores. “Esses sintomas assemelham-se à fitotoxidez ocasionada por herbicidas sistêmicos”, afirma um documento, assinado pelo engenheiro agrônomo Reinaldo Moraes da Silva. Mas, segundo o Ministério Público, para que o processo fosse adiante, o advogado das partes teria de ter pedido perícia à Secretaria de Estado de Meio Ambiente, o que não fez. A Pública procurou Luiz Otávio Moraes Martins, mas ele não quis atender a reportagem.

A agrônoma Polyana Ramos, mestre em ciências ambientais, estudou as práticas agrícolas do povo Tapirapé, que agora sofre com a contaminação da água. “Não temos estudos que comprovem, até porque são caríssimos e pouquíssimas universidades hoje dispõem dos equipamentos necessários. Mas os córregos correm dentro da Luta e temos o etnoconhecimento, o relato da população, e prontuários médicos que dizem que pessoas tiveram intoxicação provavelmente causada por químicos, que coincidem com aplicações na região”, explica.


O cacique Kamoriwai’i Elber Tapirapé conta que há cerca de dois anos eles procuraram a Fazenda Luta para pedir que as aplicações fossem feitas longe da fronteira com a Urubu Branco. “Falaram que eles jogam, mas não é problemático para o ser humano, que é só pra matar insetos que dão na lavoura”, diz Kamoriwai’i, que continuou preocupado. “A gente tem conhecimento que muitos estudos mostram como eles prejudicam o ser humano. Sabemos que muitas vezes não é imediato, leva tempo.”

Até o momento, as principais doenças que acometem os cerca de 800 indígenas são resfriados e diarreia – segundo o agente de saúde indígena Arawy’i Jackson Tapirapé, que trabalha no posto da Secretaria de Saúde Indígena na reserva. Para ele, o aumento do consumo de produtos industrializados e o contato com a água contaminada, nos banhos e nos peixes consumidos, tem prejudicado principalmente a saúde dos idosos e das crianças. A Secretaria de Saúde de Confresa não atendeu aos inúmeros pedidos feitos pela reportagem de acesso aos laudos de intoxicação por agrotóxicos. Dados do Ministério da Saúde, publicados pelo site Por Trás do Alimento, uma parceria entre a Pública e a Repórter Brasil, mostram, no entanto, que entre 2014 e 2017 todos os 27 agrotóxicos testados pelo órgão foram detectados na água consumida no município. A cidade é abastecida pelo Córrego Cacau, que cruza a Fazenda Luta. Além disso, 19 agrotóxicos foram detectados acima do limite considerado seguro pela União Europeia, entre eles, justamente, o glifosato.

A plantação de Jornooki foi prejudicada

A exposição ao agrotóxico em Mato Grosso é quase dez vezes maior do que a média nacional, de 7,3 litros por indivíduo, conforme dados apresentados em audiência na Assembleia Legislativa do estado, em abril passado, pelo médico Wanderlei Pignati, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso e pesquisador da Abrasco. Um mês depois, a Assembleia deu parecer contrário ao Projeto de Lei nº 484/2019, que propunha a proibição da pulverização aérea no estado. Segundo a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso, mais de 30% da área plantada com soja na região utiliza aviação agrícola.

Enquanto isso, a população da zona rural de Confresa continua a sofrer com o uso abusivo – quando não mal-intencionado, como denunciou o padre Alex – dos agrotóxicos. Em uma visita à Urubu Branco, Valdiva constatou que os prejuízos unem indígenas e agricultores familiares: “Todas as nações que estão aqui, fazendo todos os tipos de agricultura familiar, estão sendo punidas do mesmo jeito. Para nós, o veneno é um fracasso”.

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