Governo muda licenciamento para facilitar empreendimentos em territórios quilombolas

Por Márcia Maria Cruz
DE OLHO NOS RURALISTAS

Uma mudança na determinação de competência no governo federal sobre licenciamento ambiental, aprovada sem discussão com a sociedade civil, pode facilitar a realização de grandes empreendimentos em territórios quilombolas de todo o Brasil. Organizações ligadas aos quilombos veem a decisão como um exemplo da proposta de “passar a boiada”, sintetizada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante reunião em abril.

Publicada no Diário Oficial no dia 8, a Portaria nº 1.223 transfere da Fundação Cultural Palmares para a Diretoria de Governança Fundiária do Incra a coordenação do licenciamento ambiental em terras ocupadas por remanescentes de quilombos, criando um núcleo específico de licenciamento na Coordenação-Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ).

Com a alteração, os servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que já eram responsáveis pelos processos de regularização fundiária dos quilombos, passam a acumular a função de emitir pareceres sobre licenças em articulação com os órgãos ambientais responsáveis.

A medida é vista com preocupação por organizações quilombolas, que temem um aumento na influência de empresários e latifundiários para acelerar a concessão de licenças. “Quando o governo tira da Fundação Cultural Palmares a atribuição de licenciamento, o que nós podemos imaginar é uma forma de esvaziar esse processo”, afirma Givânia Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Para a líder quilombola, a portaria pode travar a regularização fundiária nos quilombos, embora o Incra possua mais capacidade técnica que a Palmares: “O que questionamos é a sobreposição das atribuições e funções do órgão. Não se pode deixar de tocar a regularização porque tem um empreendimento”.

RURALISTAS CONTROLAM POLÍTICA QUILOMBOLA, DIZ CONAQ

A reformulação das atribuições da DFQ trazida pela portaria nº 1.223 aumenta de forma considerável a influência de ruralistas sobre a gestão fundiária nos territórios quilombolas. Um processo que, segundo Givânia, se inicia com a própria vinculação do Incra à Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, sob a direção do ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Luiz Antônio Nabhan Garcia:

— Estamos assistindo a um desmonte de todas as políticas. Essa manobra é mais uma. Ela dá aos ruralistas o poder de reconhecer e titular os territórios quilombolas e, ao mesmo tempo, licenciar empreendimentos ali. Isso é o centro da questão.

Nabhan Garcia: decisões nas mãos de
ex-presidente da UDR. (Foto: Reprodução)

A coordenadora-adjunta do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), Milene Maia, pontua que a mudança pode tirar o foco do Incra para os processos de regularização fundiária. Ela ressalta que a portaria nº 1.223 ocorre ao mesmo tempo em que a autarquia tem sido ‘desidratada’ no governo de Jair Bolsonaro, sem detalhar como se dará o processo de licenciamento nem escutar os quilombolas. “Os projetos precisam ter consulta às comunidades”, questiona. “Como isso pode se dar em momento de pandemia?”

Na Fundação Palmares estavam registrados mais de seiscentos processos de licenciamento, que devem passar para o acompanhamento do Incra. “É passar a boiada”, afirma Maia, relembrando a frase de Ricardo Salles na reunião interministerial de 22 de abril, para quem a atenção pública na pandemia representava a oportunidade de passar medidas impopulares. “É o retrato desse governo. Vai muito na linha do ministro do Meio Ambiente de aproveitar o caos”.

Segundo a assessoria de imprensa do Incra, a normativa com os procedimentos para a análise dos licenciamentos pela equipe recém-criada está em fase final de elaboração. Disse ainda que a autarquia “está adotando as medidas necessárias para readequar a força de trabalho, a fim de que não haja prejuízo na execução das duas atividades”.

A portaria foi assinada pelo presidente do Incra, Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo Filho. Segundo o Brasil de Fato, a família dele é dona de 17 mil hectares no Rio Grande do Norte: “Família de novo presidente do Incra possui terras improdutivas e dívidas trabalhistas“.

OBRAS PODEM AUMENTAR CASOS DE COVID

Se a forma como o licenciamento será executado pelo Incra ainda é uma incógnita, a perspectiva de novos empreendimentos em terras quilombolas durante o pico da pandemia no país é encarada com apreensão.

Em Grão Mogol, em Minas, comunidade é
ameaçada por empreendimento do
grupo Brookfield. (Foto: Reprodução)

De Olho nos Ruralistas noticiou em junho a circulação de trabalhadores da empresa Mantiqueira Transmissora de Energia dentro do Território Tradicional Geraizeiro do Vale das Cancelas, em Minas, sem cumprir período mínimo de quarentena: “Empresa do grupo Brookfield coloca geraizeiros em risco de contágio por Covid-19“.

A denominação de geraizeiros é adotada por camponeses da região dos “Gerais”, que inclui remanescentes de quilombos. Eles contam que os operários vinham de cidades com casos confirmados de Covid-19, descumprindo o acordo firmado para paralisar as obras durante o período de quarentena.

Segundo dados da Conaq, as comunidades quilombolas contabilizavam, até o dia 14, 3.465 casos confirmados da doença e 133 óbitos.

Márcia Maria Cruz é jornalista |

Foto principal (Marcelo Camargo/Agência Brasil): porteira aberta a partir de uma portaria do Incra

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