Há 16 anos Brasil espera por regras para controlar transgênicos

Por Redação RBA

São Paulo – Um pedido de vista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes interrompeu na quinta-feira (2) o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.526), que questiona itens da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005). Foi mais um balde de água fria naqueles que há 16 anos aguardam uma decisão que pode, antes tarde do que nunca, controlar o setor de transgênicos no Brasil.

Proprietário de fazenda com familiares em Mato Grosso, Gilmar também pediu vista da ADI 5.553, apresentada em 29 de junho de 2016, que questiona itens da lei sem decidir se são constitucionais as isenções de IPI e a redução da base de cálculo do ICMS dos agrotóxicos.

Pouco antes, o ministro Edson Fachin havia evocado, em seu voto, o respeito ao Princípio da Precaução. “Diante das dúvidas sobre as consequências do uso de organismos geneticamente modificados (OGMs) – o mesmo que transgênicos –, o princípio da precaução é essencial e deve ser assegurado nas leis e normativas brasileiras. Pelo regulamento do STF, Mendes tem 30 dias para ler todo o processo.

Transgênicos no STF

Em seu voto, Fachin divergiu com o relator da ADI, ministro Marques Nunes, alinhado com os interesses dos ruralistas. Foi indicado por Jair Bolsonaro para a vaga de Celso de Mello, aposentado há um ano. Proposta em 2005 pelo então Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles, a ADI questiona itens da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005).

A ADI contesta mais de 20 dispositivos da lei que estabelecem normas e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados. Após mais de 15 anos com o processo paralisado no STF, a ação foi incluída na pauta da Corte logo após o novo relator da ADI, o ministro Nunes Marques, ser empossado, em novembro de 2020. Incluída na pauta telepresencial de 3 de fevereiro passado, a ação ainda não tinha começado a ser julgada. 

Fachin considera que a regulação internacional dos organismos geneticamente modificados ainda visualiza um ambiente de dúvidas sobre os impactos das OGMs na saúde humana. “Há graves incertezas quanto às consequências relativas ao seu impacto nos ecossistemas, na biodiversidade, nos modos tradicionais e autóctones de vida, e em questões socioculturais”, enfatizou o ministro. Em razão disso, recorda Fachin durante voto, “o princípio da precaução tenha sido largamente enfatizado” nos principais documentos sobre transgênicos: a Convenção sobre Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena, normativas das quais o Brasil é signatário. A manifestação do ministro dialoga com os argumentos presentes na ação. 

Conforme o artigo 225 da Constituição Federal, atividades com potencialidade de prejuízos ao meio ambiente – como o uso de organismos geneticamente modificados – devem ser submetidas obrigatoriamente a estudos prévios de impacto ambiental. No entanto, a Lei de Biossegurança – questionada na ação em julgamento – tornou facultativa a realização dos estudos prévios e condicionada à decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Ou seja, à revelia da Constituição, a CTNBio, de modo isolado, pode decidir pela não necessidade de elaboração do estudo prévio ambiental. 

Princípio da precaução

“Uma vez que este princípio da precaução reclama aplicação no caso concreto, revela-se injustificada a opção do legislador de alocar, unilateralmente, na CTNBio a competência para definição do potencial danoso de organismos geneticamente modificados”, aponta Fachin em outro trecho. A potencial lesividade dos organismos geneticamente modificados é reconhecida pela legislação brasileira, com uma com lei voltada especificamente à biossegurança nacional e em instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.

A leitura do ministro diverge do voto do relator da ação, ministro Nunes Marques. Sem mencionar a exigência constitucional de estudo prévio de impacto ambiental de atividade causadora de dano ao meio ambiente – como os OGMs –, Nunes se valeu do argumento de que vacinas, por exemplo, que contêm OGMs, não geram impacto ambiental, portanto, dispensam estudos prévios. 

“O ministro manifesta desconhecimento de algo tão básico como a diferença entre seres vivos e substâncias inanimadas. Enquanto tratamentos terapêuticos, utilizando transgenia são utilizados por recomendação e com acompanhamento médico, as plantas, insetos, animais e bactérias transgênicos estão sendo liberados em um mundo não preparado para lidar com eles”, disse ao site da organização Terra de Direitos o engenheiro agrônomo e membro do Movimento Ciência Cidadã, Leonardo Melgarejo. 

“O voto do ministro Nunes Marques traz inseguranças jurídicas de temas já consolidados no direito socioambiental, por meio de instrumentos internacionais assinados e ratificados pelo Brasil. Na prática o Ministro pode afastar toda e qualquer aplicação do Princípio da Precaução. Um risco imenso para o caso em tela, mas em outros casos futuros que envolvam atividades de risco”, destacou a assessora jurídica da mesma organização, Naiara Bittencourt. 

Progresso científico

A assessora ainda contestou a fala do ministro, de que a ideia da precaução figura-se como “intransigente” e obstruidora do progresso científico. “Mecanismos de monitoramento e avaliação em verdade aprimoram a ciência, não a obstruem. Utilizando de uma reportagem de jornal, o Ministro acabou ignorando estudos e a própria taxação legal sobre os riscos dos OGMs”, complementou.

Com a implementação da Lei, em vigor há mais de 15 anos, as aprovações têm sido automáticas e dispensam a realização de estudos prévios. Na prática, as empresas decidem por conta própria se vão ou não monitorar os efeitos de seus produtos no ambiente e na saúde.

“Vale lembrar o caso da soja, que foi aprovada pelo Congresso Nacional. Hoje temos que 93% das sementes de soja liberadas são de multinacionais, 99% são commodities agrícolas, sendo 80% modificadas geneticamente para uso de agrotóxicos, alguns já banidos em outros países. O Princípio da Precaução serve para proteger a população e a própria ciência desse tipo de captura. Esperamos que os demais ministros não sigam o voto do relator e corrijam os excessos da Lei de Biossegurança”, disse ao site Gabriel Fernandes, integrante do Grupo de Trabalho Biodiversidade, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Na argumentação  técnica e jurídica na ação, realizada na ação pela Terra de Direitos e a Associação Nacional de Pequenos Agricultores, na condição de amicus curiae, as organizações destacaram ao menos 750 estudos científicos, que indicam riscos e incertezas dos OGMs, como consta do livro Lavouras Transgênicas foram desconsiderados pela CTNBio

Interesse público

Além de interesse público, a manifestação oral das organizações no julgamento da ação, realizada pelo advogado Carlos Frederico Marés, destaca o interesse dos agricultores no aprofundamento da ciência sobre os impactos dos OGMS. “Os pequenos agricultores pretendem e querem dizer que a sua produção – fundamentalmente de alimentos – depende de um controle científico muito estreito. Os agricultores pedem que haja aprofundamento do conhecimento dos impactos que podem causar os transgênicos”, disse Marés. 

Outro ponto de destaque na ADI diz respeito aos dispositivos que atribuíram competência exclusiva para a CTNBio na decisão sobre casos de liberação de produção ou comercialização dos organismos geneticamente modificados. Com isso, os demais órgãos públicos federais, dos estados e municípios têm anulado o exercício de suas funções em relação aos OGMs. A Lei 11.105/2005 ainda indica, na prática, que a fiscalização dos OGMs é tarefa exclusiva dos órgãos federais, excluindo as demais esferas.

Em manifestação aos ministros, a Terra de Direitos e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) destacam que “é justamente a competência comum nessa matéria que permite a cooperação entre todos os entes federados, seus órgãos e entidades na proteção e busca pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, consagrado na Constituição Federal”, conforme trecho da manifestação conjunta.

Biossegurança X transgênicos

Alinhado ao que determina a Lei de Biossegurança, o relator ministro Nunes validou que a competência legislativa seja exclusiva da União. “Estando claro que a competência legislativa é da União, não menos exato é que a competência de serviço, isto é, a competência para licenciar e fiscalizar deve dar-se dentro do quadro normativo criado pela lei da União . Os estados e municípios, em tese, poderiam até ampliar certos serviços, suplementando a lei federal, mas tudo dentro do espaço semântico da lei geral editada pela União”, sublinha um trecho do voto do magistrado. Para o ministro, ”os entes locais podem suplementar a legislação federal, sem prejuízo da observância do quadro normativo traçado pelo Congresso Nacional.”

No entanto, o ministro ignorou o contexto de omissão de estados da federação até mesmo na fiscalização dos organismos geneticamente modificados, como fez Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar), que se viu desobrigada de fiscalizar o não cumprimento de medidas para não contaminação de cultivos de milhos crioulos por cultivos com sementes geneticamente modificadas.

Em oposição, Fachin reafirmou a competência comum entre União, estados e municípios na proteção ambiental e apontou que todos os entes da federação “não podem se desincumbir por simples referência à atuação da União”.

Mais transgênico, menos agrotóxicos?

O ministro Nunes Marques, em seu voto, a partir de notícia publicada em jornal,  afirma que os transgênicos reduzem os agrotóxicos. Segundo ele, ao criar plantas mais resistentes, diminui-se “a necessidade de aplicação de defensivos agrícolas para combater as pragas.”

Ao fazer essa afirmação o ministro ignora os estudos de pesquisadores da Fiocruz e Embrapa, os quais apontam que “contrariando as expectativas iniciais de diminuição do uso de agrotóxicos após a introdução de transgênicos, observou-se que o uso total de agrotóxicos no Brasil aumentou 1,6 vez entre os anos de 2000 e 2012.” 

O estudo indica que há baixa correlação entre a introdução entre o consumo de agrotóxicos e herbicidas e a produtividade da soja, sendo que o uso de agrotóxicos nesta cultura foi elevado em mais de 3 vezes. Ainda, sustenta-se que “a introdução de culturas OGM levou ao aumento no uso de agrotóxicos, com a possibilidade de aumento da exposição humana e ambiental e, consequentemente, aos impactos negativos associados a essas substâncias.

Redação: Cida de Oliveira, com Terra de Direitos

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