Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lança na sexta-feira (5) o Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular, levando em conta as consequências causadas pela pandemia do novo coronavírus.
Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, ajudou na construção das medidas que têm o objetivo de promover a criação de empregos, produzir alimentos para o povo e garantir renda e condições para que famílias vivam dignamente. Confira a entrevista!
Página do MST: Como se deu a construção deste Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular?
Kelli Mafort (KM): O Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular é uma construção do Movimento Sem Terra para a sociedade brasileira e está dentro da conjuntura da pandemia, que expôs as diversas contradições do capital, especialmente em relação à desigualdade social.
O Brasil está entre os 20 países mais desiguais do mundo e destes, 8 estão na América Latina. Temos aqui uma situação que já era dramática em relação à classe trabalhadora do ponto de vista das relações de trabalho: nós tivemos recentemente medidas como a Reforma Trabalhista, que praticamente precariza as condições de trabalho para a maior parte do povo brasileiro. Temos hoje cerca de 60% da força de trabalho que está na área da informalidade e a desigualdade social crescente, na qual milhares de pessoas não tem acesso à alimentação, convivem e enfrentam o problema da fome diariamente, outras também não têm acesso à água.
Agora, com a pandemia, estes temas colocam os trabalhadoras e trabalhadores em todo o mundo, especialmente os negros e mais pobres, numa situação de extrema gravidade. Segundo pesquisa realizada recentemente pela ONU, teremos o ingresso de 500 milhões de pessoas a mais na faixa da extrema pobreza, isso somado à 1 bilhão de pessoas no mundo que já conviviam com problemas de falta de acesso à alimentação, falta de acesso à água potável, obrigadas à imigrações forçadas e sofrendo com todo o tipo de vulnerabilidade social.
A pandemia expõe este grave problema social, que tem a ver com a crise do próprio sistema do capital, que é uma crise política, econômica, ambiental e social. A pandemia também é proveniente de um enorme desequilíbrio do capital com a natureza, um modo destrutivo com o qual o capital e suas empresas tendem a gerar muitas pandemias. É por isso que agora nós estamos enfrentando a COVID-19 com um enorme custo humano, de vidas que estão sendo ceifadas, mortes que poderiam ser evitadas e por isso nós precisamos de medidas emergenciais.
Como o Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular se insere neste contexto?
KM: O MST tem uma construção de 36 anos de história na defesa da Reforma Agrária, e no 6º Congresso do MST nós definimos, em 2014, a construção da Reforma Agrária Popular como uma medida necessária, não somente para atender a necessidade das trabalhadoras e trabalhadores Sem Terra, mas também para poder de fato congregar mais pessoas da sociedade, especialmente pessoas nos centros urbanos – já que aqui no Brasil nós temos 85% de pessoas que vivem nos centros urbanos. Buscamos envolver a maioria da sociedade brasileira na defesa dos bens naturais e, portanto, a defesa é não só da democratização do acesso à terra, mas também outras relações com os bens naturais que equilibrem a relação humana com a natureza, que não sejam destrutivas como é essa lógica do capital.
Então o Plano surge como emergencial, porque nós continuamos defendendo, do ponto de vista estratégico, a Reforma Agrária Popular como uma medida fundamental. No entanto, agora existem questões urgentes necessárias que exigem medidas para poder, ao mesmo tempo, enfrentar o problema do vírus, mas também o problema da fome. E, na nossa visão, a Reforma Agrária Popular e as medidas emergenciais desta reforma são uma forma eficiente para a gente poder lidar com essas necessidades humanas, tanto de acesso ao trabalho, à alimentação, à moradia, mas sobretudo à vida. Os trabalhadores Sem Terra entendem que nós estamos numa condição de luta em defesa da vida, nós convivemos em um sistema que nos mata de várias formas e estas diferentes formas tem a ver com esta característica também de crise do capital.
E como este plano está estruturado?
KM: Logo no início da pandemia, as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo se uniram a outras organizações da sociedade brasileira para poder lançar uma plataforma emergencial com medidas relacionadas à economia, ao trabalho, alimentação, à proteção das pessoas do campo e da cidade, diante da COVID-19. Com base nesta plataforma emergencial nós fomos construindo, com as várias organizações, algumas medidas, com os povos do campo, das águas e das florestas, a Via Campesina, mas também todo o campo unitário do sindicalismo rural, dos trabalhadores assalariados, dos pescadores, das mulheres camponesas, dos indígenas, dos quilombolas. Fomos construindo um plano amplo trazido no nosso segundo seminário Terra e Território, no qual nós apontamos ali as questões fundamentais do campo na atualidade e o quanto que nós teríamos também que nos articular enquanto resistência.
Mas nesse plano queremos destacar o tema da Reforma Agrária e como ela, inserida neste contexto mais amplo do campo brasileiro, pode efetivamente contribuir para salvar vidas imediatamente e também a longo prazo. O nosso plano é constituído de quatro pilares fundamentais.
- TERRA E TRABALHO
Nós entendemos que é fundamental poder assentar famílias da Reforma Agrária, e nosso país tem uma quantidade enorme de terras disponíveis para isso. A prova foi a correria dos ruralistas para aprovar recentemente o PL 2633, que pretendia arrecadar 65 milhões de hectares de terras públicas da União e passar isso para grileiros, para ruralistas, e uma boa parte disso em estados da amazônia, embora pudesse ser aplicada em todo o território nacional. Ora, se tem 65 milhões de hectares de terras públicas para grileiros, invasores, empresas que destroem o meio ambiente, que perseguem os povos do campo, que estão envolvidos em práticas de nossos bens naturais, como é que não tem terra para a Reforma Agrária?
Então um dos temas que está lá no nosso Plano, neste item de terra e trabalho, é a arrecadação imediata das terras públicas devolutas e a destinação para a Reforma Agrária. Nós temos também diversas empresas que tem dívidas com a União por sonegação fiscal. Entre estas empresas, 729 empresas detém, em conjunto, 6 milhões de hectares de terra e devem, somente estas, um montante de 200 bilhões de reais para os cofres públicos. Então a medida emergencial seria que a dívida destas empresas fosse cobrada imediatamente e convertida em terras, que estas empresas entregassem as suas terras como parte do pagamento destas dívidas que elas tem com a União e que fossem assentadas as famílias imediatamente.
Outro ponto importante também é que assentássemos famílias próximas a centros urbanos. Existe uma necessidade, dada a concentração de pessoas em grandes cidades e nas capitais e centros urbanos, então nós precisamos também fazer a Reforma Agrária nestes polos urbanos. E é possível, num módulo fiscal menor, adaptado à realidade, poder fazer dentro de um planejamento de agroecologia, de agrofloresta, que tenha uma produção farta de alimentos, geração de renda, que estas famílias tenham também o direito à terra, trabalho e alimentação. Também exigimos imediatamente a suspensão dos despejos e reintegração de posse. É um absurdo, em meio a esta pandemia na qual uma das medidas é a de fazer o isolamento social, as pessoas não conseguirem fazer esse isolamento porque não tem casa. E as casas precárias que existem nos acampamentos, os barracos de lona urbanos e rurais, também agora estão sofrendo despejo. Então é necessária a suspensão imediata de despejos em nível nacional.
Ainda neste tema, também precisamos que seja assegurado aos povos indígenas e povos quilombolas a demarcação e o reconhecimento dos seus territórios. Rechaçamos e exigimos medidas urgentes para que seja garantido a integridade física dos indígenas, porque sabemos que a contaminação da COVID-19 está relacionada diretamente às atividades de mineração e a invasão destas áreas por parte dos ruralistas. Então também é muito importante afirmar que essa não é uma questão somente de vontade política do governo federal, que atualmente é um governo anti-reforma agrária, mas nós temos que fazer uma pressão da sociedade em relação a estes temas.
- PRODUÇÃO DE ALIMENTOS SAUDÁVEIS
Nós defendemos a retomada emergencial do Programa de Aquisição de Alimento (PAA) que teve a alma política sucateada durante o governo Temer e também pelo governo Bolsonaro. O anúncio da Ministra Teresa Cristina, de recursos para a PA , não se efetivou, não chegou na prática para os agricultores e agricultoras que tanto necessitam desta política como uma medida fundamental para poder assegurar renda para os produtores e, ao mesmo tempo, uma via direta de alimentação que chega às pessoas que mais necessitam na cidade, através da doação de alimentos a entidades que atendem ao público de vulnerabilidade social, mas também os bancos de alimentos, que nós precisamos de alimentação urgente;
A segunda medida é que o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), seja assegurado também agora durante a pandemia, fazendo a discussão da comida de verdade, para poder garantir a imunidade das nossas crianças, adolescentes e jovens, alunos das escolas que têm acesso a comida de verdade: comer frutas, verduras, legumes e poder aumentar a sua imunidade.
Muitos governos estão transformando o PNAE em uma medida de cartão, de valor irrisório, para poder comprar alimentação e nós sabemos que a alta está absurda neste período da pandemia porque tem se feito especulação sobre o preço dos alimentos. Um exemplo isso é o feijão, cujo quilo está na casa dos R$ 12, alguns lugares chegando a R$ 14, então é uma especulação muito grande. Lutamos para que o PNAE esteja garantido como comida de verdade para as famílias e que não sejam interrompidos ou suspensos contratos já feitos nos municípios para poder fornecer essa alimentação nas casas das famílias.
Também aqui nós defendemos que, em meio a este processo de pandemia, sejam liberados recursos para um plano nacional de agroecologia, garantindo imunidade para o povo brasileiro e o acesso à comida de verdade sem agrotóxicos. Nós exigimos um incentivo para a produção sem veneno, e essa comida sem veneno certamente está entre as pequenas agricultoras e agricultores, que sejam destinados recursos para hortas urbanas agroecológicas. Nós temos toda a capacidade técnica para poder orientar que estas hortas urbanas sejam feitas rapidamente em vários terrenos, locais vazios, abandonados ou mesmo área de linhão. Existe muita possibilidade de ter hortas urbanas em terrenos municipais para poder aumentar a produção e acesso à produção e à comida.
E também é fundamental uma linha de crédito especial desburocratizada, não necessariamente vinculada à questão da DAP, que é a Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), mas que seja uma linha de crédito desvinculada inclusive de dívidas anteriores, e que essa linha possa assegurar a produção de alimentos na ponta. Nós temos visto ações importantes no campo de solidariedade.
Estas ações de solidariedade são muito importantes, mas para que elas continuem acontecendo tem que ter produção. E produção farta. Para isso, é preciso de estímulo na ponta.
- PROTEGER A NATUREZA, A ÁGUA E A BIODIVERSIDADE
Precisamos zelar pelos nossos bens naturais, pela natureza, incentivar o plantio de árvores, mas também a proliferação de agroflorestas. É uma forma da gente garantir e produzir alimento farto e ao mesmo tempo preservar florestas, áreas, para que a gente possa restabelecer um equilíbrio, enfrentar as questões das mudanças climáticas. Por isso que é importante a gente fazer frente a toda essa política de desmatamento que foi levada a cabo aí pelo Ministério do Meio Ambiente, pelo ministro Ricardo Salles, um genocida da vida, não só da vida dos povos do campo, mas também de toda a nossa biodiversidade.
- CONDIÇÕES DE VIDA DIGNA NO CAMPO
Temos que garantir para as populações no campo de assentamentos e acampamentos, moradia digna para que também a juventude permaneça no campo, não permitir que nenhuma criança esteja desassistida neste processo de pandemia em relação às escolas do campo. Elas são diferenciadas e a gente sabe que havia toda uma política anterior de fechamento destas escolas. Então aqui falamos sobre o PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) e que o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) seja renovado. Nós sabemos que os recursos do Fundeb são fundamentais para poder garantir os recursos básicos da educação nos municípios. O Movimento dos Sem Terra está em vários municípios em que as escolas fecharão, pois não terão condições de pagar os trabalhadores da educação.
Outro ponto que destacamos aqui é o tema do debate ao enfrentamento da violência doméstica. Esta medida de isolamento social lamentavelmente tem contribuído para uma diminuição dos canais de denúncia de violência doméstica, que atinge as crianças, os adolescentes, os idosos, os sujeitos LGBTs e também as mulheres. Então nós precisamos de redes imediatas que possam dar voz essas denúncias. Os mecanismos que temos são insuficientes, não dialogam com a realidade do campo, onde várias delegacias foram fechadas, então nós precisamos ter políticas voltadas à realidade do campo e elas são urgentes porque nós temos várias mulheres sendo violentadas, várias formas de violência, físicas, psicológicas, patrimonial, e nós precisamos enfrentar.
E, por fim, fortalecer e ampliar o Sistema Único de Saúde (SUS) no campo, especialmente as equipes de saúde da família. Nós sabemos que a COVID-19 é uma doença de complexidade, principalmente com o agravamento em casos com ligação pulmonar e os efeitos dela com agravadores de risco, então ela pode ser evitável com medidas muito simples, de orientação. É fundamental que as equipes de saúde da família estejam em campo e sejam fortalecidas, com agentes da própria comunidade, populares. Então defendemos medidas emergenciais que possam fortalecer o SUS no campo, através das equipes de saúde da família.
*Editado por Luciana G. Console