Plantar futuro e ancestralidade: entrevista com Márcia Mura, Ceres Hadich e Ananda Machado

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

Com o lema “Semear o presente, respirar no futuro: Árvores vivas e fora Bolsonaro!”, o MST lança esta semana uma jornada de lutas especial, lembrando a importância do plantio de árvores e produção de alimentos saudáveis. Serão diversas ações que celebram não somente o Dia da Árvore (21 de setembro) e a chegada da primavera, mas também apresentam a dimensão do plantio conectada ao Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimento Saudáveis, iniciativa que faz contraposição às ameaças constantes à vida que o agronegócio realiza com as queimadas e o desmatamento.

Mas para plantar o futuro, o Movimento também pensa o passado e o amor à terra, o que tem conexão direta com a luta indígena e dos povos tradicionais. Atualmente, uma análise realizada pelo Greenpeace apontou que o desmatamento em Terras Indígenas (TIs) no período de 1º de janeiro a 31 de julho deste ano subiu 35,6%, se comparado ao mesmo período do ano passado. Só o corte seletivo de madeira subiu 66% no período, ao mesmo tempo em que o garimpo teve um aumento de 56,2%.

Por isso, a estratégia de ação do MST está relacionada às atividades concretas desenvolvidas nos territórios, visando não só a difusão de informações, mas principalmente a intersetorialidade e pluralidade de visões. Nesse sentido, abaixo apresentamos uma entrevista exclusiva com três mulheres que abordam estes desafios atuais da realidade brasileira: Ananda Machado, professora do curso Gestão Territorial indígena e coordenadora do Programa de Valorização das Línguas e Culturas Macuxi e Wapichana (UFRR), traz a perspectiva da pesquisa acadêmica da luta indígena; Márcia Mura é filha do Rio Madeira, indígena do território ancestral Mura; e Ceres Hadich, da Direção Nacional do MST.

Juntas, elas falam sobre resistência, marco temporal indígena e outras perspectivas de luta diante da conjuntura do governo Bolsonaro. Confira!

Atualmente, quais são as principais bandeiras de luta que o MST levanta em defesa da biodiversidade e de biomas como a Amazônia e Cerrado? 

Ceres Hadich: O MST é um movimento de luta pela terra, pela Reforma Agrária, e pela transformação da sociedade. Nas nossas bandeiras de luta a gente sempre teve muito presente a perspectiva da luta, vinculada diretamente à luta pelo meio ambiente, pela preservação dos nossos biomas e pelo avanço nesse cuidado com a natureza e com os bens comuns.

Especialmente nesse período contemporâneo onde cada vez mais biomas tão importantes para a constituição e a preservação da nossa agrobiodiversidade, como o Cerrado e a Amazônia vêm sendo cada vez mais ameaçados. A gente se coloca com muito mais contundência, muito mais preocupação, em prol da defesa desses biomas, da biodiversidade e do cuidado com os bens comuns.

São regiões que preservam e guardam muito da nossa biodiversidade, muito da nossa água. Quando a gente fala nossa, é não só nossa enquanto o povo brasileiro, mas nós enquanto humanidade, são biomas fundamentais para garantir a diversidade e qualidade de vida não só de nós, povos brasileiros, mas também dos povos do mundo como um todo.

Ceres Hadich da Direção Nacional do MST. Foto: Wellington Lenon 

Observando de maneira mais geral, como é a situação dos povos indígenas no Brasil hoje?

Ananda Machado: Em relação à situação atual dos povos indígenas, temos uma diversidade muito grande. Mas uma coisa que merece ser ressaltada é o poder de organização, o poder de união. São vários povos falando línguas diferentes, com culturas diferentes, mas na hora da luta eles se juntam. E aí esse governo vem tentando reduzir uma série de direitos, alguns realmente já reduziram, principalmente os que têm a ver com pesquisa, cortando verbas de universidade, acabando com o Ministério da Cultura.

Por exemplo, os projetos de Licenciatura Intercultural estão todos ameaçados, tinham todo um sistema de apoio, de logística; aqui, por exemplo, tem indígena que vem de localidades que precisa de “hora-vôo” e cadê o recurso? Não tem mais. Então estamos de mãos atadas, o que é muito triste, um desrespeito muito grande para essas populações, porque direito adquirido a gente não tira. Porque justamente aquele direito foi conquistado com muita luta, com muito sangue. E aí, até quando vão continuar?

Márcia Mura: Eu sou filha do rio Madeira, nasci em Porto Velho, que antes de tudo, é território ancestral Mura. Nosso processo Mura, em Porto Velho (Rondônia) é totalmente invisibilizado por uma cartografia oficial de Estado. O povo Mura se encontra tanto no Amazonas quanto em Rondônia, só que em Rondônia ele se encontra em espaços ribeirinhos, extrativistas e urbanos. Atualmente nós estamos fazendo quatro pontos de retomada no rio Madeira para o lado de Rondônia, todos estão sendo puxados por mulheres. São as mulheres que estão nas frentes dessas resistências. Nós temos o coletivo Mura, formado por pessoas que estão nesse processo de retomada e estamos interligados com os territórios no sul do Amazonas e em várias regiões do Amazonas, onde encontram-se o povo Mura.

De maneira geral, os povos indígenas de toda a Pindorama, todo o território ancestral indígena, está sofrendo ameaças, estão tendo seus territórios invadidos. Territórios já demarcados sofrendo reduções e sendo constantemente invadidos. Os povos livres, denominados como isolados que estão dentro desses territórios, estão sendo acuados, porque tem muita invasão de fazendeiros, madeireiros, mineradores, e também muitas queimadas.

Márcia Mura, indígena do território ancestral Mura. Foto: Arquivo pessoal

Quais desafios a pandemia trouxe para os povos do campo e indígenas?

Ceres: A pandemia intensificou as contradições existentes no campo. Falamos isso enquanto povos camponeses, povos indígenas, povos quilombolas, a gente sabe que a realidade dos povos no campo era uma realidade historicamente dura e de muita resistência, de muito trabalho, e muita luta, para a gente conseguir se viabilizar do ponto de vista econômico, do ponto de vista social, do ponto de vista da nossa segurança enquanto povos aí para viver e se estabelecer no campo.

Mas a pandemia, a crise econômica, a crise política, e isso tudo conjugado, nos deixaram numa condição de muito mais vulnerabilidade. Boa parte das nossas populações que estão no campo, e leia-se os povos indígenas, povos camponeses, povos de agricultores familiares e tradicionais, sequer tiveram qualquer tipo de assistência em relação à economia. Boa parte das nossas economias foram afetadas diretamente em função da pandemia por conta da quebra dos ciclos de mercado que até então existiam, então um grande desafio foi conseguir resistir a esse período difícil e ao mesmo tempo, se reinventar na condição de buscar alternativas para seguir vivendo no campo.

Ananda: Essa pandemia trouxe para os povos indígenas uma série de problemas a mais do que eles já tinham. Os Yanomami, por exemplo, que estão sendo invadidos por garimpeiros, a dimensão dessa invasão aumentou muito com a pandemia.

Nesse momento os indígenas estão sendo obrigados a ir a Brasília se manifestar. Vão limitar os seus territórios, limitar os seus direitos, e você vai ficar quieto? Não, estão certos, na minha visão é mais uma estratégia genocida desse governo, porque não se faz isso no período de pandemia. É um ato covarde, um ato desumano.

São comunidades inteiras desprotegidas e, por outro lado, tem todo um entendimento do que significa esse momento. Tem também a questão das medicações; tem populações que, com influência das igrejas, começaram a deixar de lado o conhecimento dos pajés, dos curandeiros, e com a pandemia muitos deles voltaram a fazer chás, xaropes, que já estavam caindo no esquecimento. Então eles também criaram “a mais” do que o que já se tem na ciência ocidental já conseguiu conquistar em relação à cura, ao tratamento da Covid. Vários povos indígenas tem também, cascas de árvore, folhas, frutos, que estão sendo usados para autoproteção contra a Covid-19.

Como foi a marcha contra o julgamento do marco temporal que ocorreu no STF?

Márcia: Conseguimos nos articular para uma marcha que foi a realização de um sonho muito lindo, poder estar ali com as minhas parentes Muras. Na marcha fomos dez Muras, caminhando, segurando a nossa faixa, fazendo nosso grito de guerra, nosso grito de resistência, nosso grito de luta. Nós estamos lutando por nossos direitos, fazendo a resistência, e foi muito importante estar ali pela primeira vez com as parentas Muras, juntas, nos fortalecendo. Muitas delas estavam pela primeira vez saindo de seus territórios e participando de uma mobilização nacional, e foi a primeira vez que tinha uma caravana formada só por Muras.

Cada uma de nós representou uma Frente de Resistência Mura na Amazônia, e juntas pudemos conhecer melhor os desafios e formar uma rede para estarmos resistindo em defesa da nossa Amazônia, dos nossos territórios, defesa dos nossos direitos.

Indígenas Muras se pararam para marcha em Brasília contra julgamento do Marco Temporal. Foto: Arquivo pessoal Márcia Mura

As ocupações feitas em Brasília são de suma importância. Nós fomos obrigados a sair dos nossos territórios, em diferentes contextos, e que envolvem também o contexto urbano. Porque muitos povos estão também em espaços urbanos, não porque quiseram, mas porque foram obrigados a estar. Em muitos casos, não fomos nós que saímos do nosso território fomos para as cidades, mas sim as cidades chegaram no nosso território, como no nosso caso Mura em Porto Velho, que é território ancestral e é invisibilizado por uma cartografia da cidade.

Como se dá este debate na pesquisa de cultura indígena?

Ananda: Documentar uma língua é documentar o nome de árvores, por exemplo, que ninguém conhece, só aquele povo. Você documentar a determinada história, às vezes dentro dessa história aparece uma planta que ninguém nunca ouviu falar, aparece uma ave que já não existe mais fisicamente, mas está ali guardada dentro da memória de uma história, dentro das literaturas indígenas. Estudos arqueológicos comprovam que é um absurdo você querer delimitar 1988 como uma data para dizer “quem estava aonde, e quem tem direito àquele território ou não”.

Até porque culturas e territórios, assim como na época tocaram vários povos do Xingu, e eles estão lá, estão vivendo, sentem saudade dos seus territórios de origem mas estão lá, a territorialização é constante.

As culturas elas se transformam, elas se re-adaptam a um novo território, e o que é mais interessante é que a gente vê uma série de comunidades indígenas retomando antigos territórios, voltando a plantar nesses territórios, reflorestando o que um fazendeiro destruiu, por exemplo para plantar arroz e deixar tudo envenenado.

Os povos indígenas têm muito a nos ensinar em relação à gestão do território, em relação ao que fazer para a gente poder continuar vivo, porque se a gente continuar nessa lógica… aqui tem BRs que a gente vai seguindo e é soja de um lado, soja de outro. Enfim, são coisas a se pensar o que a gente quer para o futuro. Então eu acho que o Brasil precisa pensar o que ele quer para o futuro.

E como o Plano Nacional do MST de plantio de árvores conversa com os direitos indígenas e o julgamento do marco temporal que ocorrem no STF?

Ceres: O Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis é mais do que uma ação de plantio de árvores em todo o Brasil: ele se propõe a ser um plano de debate, de politização, de diálogo, de construção dessa reflexão coletiva em torno da nossa relação com os bens comuns com o futuro do planeta, com essa relação entre a Reforma Agrária Popular e o restabelecimento de relações mais equilibradas com a natureza e o meio ambiente como um todo.

É bastante desafiador, uma meta ousada, mas para além da meta numérica do plantio das árvores a gente se coloca um desafio mais amplo, a partir do Plano Nacional, que é dialogar também com esse horizonte tão necessário junto da sociedade brasileira que é o meio ambiente, o nosso cuidado com os biomas, e a nossa preocupação com o futuro do planeta.

Isso tem um diálogo direto com os nossos povos originários, a relação com os territórios e a defesa da nossa biodiversidade, na medida em que os povos indígenas são historicamente povos que se preocuparam com esse cuidado, com esse reflorestar, com esse reconstituir ou mesmo fazer uma agricultura em conjunto com a natureza, não só destruindo, não só tirando, mas também recolocando, inclusive ajudando a conservar e, muitas vezes, a recuperar as nossas matas, os nossos biomas naturais.

Os direitos indígenas e o desmatamento das florestas têm tomado alguns noticiários como urgente. Nos últimos meses, o dobro de floresta foi desmatado na Amazônia em comparação ao ano passado. A que podemos atribuir esse destaque?

Ananda: Essa questão de atualmente os direitos indígenas e a vida das florestas estarem ameaçadas está muito em evidência durante esse período porque foi colocado no Ministério do Meio Ambiente uma pessoa que não estava fazendo o papel dela. Muito pelo contrário estava associado a bancada do agronegócio, da mineração, da destruição.

Então se você tem uma legislação que é sistematicamente violada, os direitos vêm sendo sistematicamente violados, se você trabalha com instituições que eram para estar protegendo e estão dando a mão para a destruição, a situação fica muito crítica. E depois que destruiu, que desmatou, que cavou tudo, açorou o rio, são muitos anos e talvez não se consiga recuperar. Hoje a gente já está numa crise climática, e aí a gente vai continuar nessa direção. Então esse destaque, disso tudo vir à tona, tem como pano de fundo uma situação completamente caótica. A gente vive um momento crítico completamente absurdo.

E como o MST vê a agroecologia no plantio de alimentos de forma sustentável e na recuperação da Amazônia?

Ceres: A gente entende que a agroecologia é a construção de novas relações entre as pessoas, entre as pessoas e a natureza, novas relações de sociedade, novas relações de produção, e que mais do que um conjunto de técnicas, a agroecologia nos permite estabelecer outras relações com o mundo. Quer dizer plantar um outro mundo, semear um novo mundo, uma nova forma de pensar aquilo que a gente quer para as futuras gerações e para a geração presente.

Quando a gente se propõe a ter como central a produção de alimentos saudáveis, mais do que produzir alimentos sem veneno, a gente quer produzir alimentos livres, e pessoas livres, e relações livres.

Por isso, a agroecologia extrapola o contexto da produção da comida no campo, ela vem para dentro das nossas relações, das casas, entre as pessoas, da cooperação, da nossa relação com a sociedade e da nossa relação com todas as formas de vida.

E nesse sentido, pensar o Bioma Amazônico com toda sua diversidade, sua potencialidade, para explorar diferentes formas de restabelecer essas relações de equilíbrio e de humanização entre as pessoas e também entre elas com a natureza, é fundamental. O Bioma Amazônico historicamente nos ensinou muito, por meio dos seus territórios, dos seus povos originários, que até hoje resistem na construção desse bioma. E há um potencial gigante que nos permite avançar com a produção de alimentos saudáveis em equilíbrio com a natureza e reconstruindo tais territórios. Então, há um potencial bastante grande para a gente fazer essa transição agroecológica e essa caminhada rumo a outro paradigma na construção da nossa agricultura.

Sobre o futuro, quais são as perspectivas e o que acha que precisa para que estas bandeiras indígenas se concretizem daqui para a frente?

Mura: Nós existimos e resistimos muito antes de 88. Se tiver que estabelecer algum temporal, que seja estabelecido o marco temporal da chegada dos colonizadores com suas caravelas, com suas armas, com suas imposições, e com sua violência querendo nos matar, querendo nos dominar, querendo nos exterminar. Nós estamos aqui fazendo a resistência porque somos a resistência.

Ananda: Eu acho que a gente tem que deixar os indígenas em paz. Acho que, por exemplo, assim como a gente tem as nossas escolas, e o investimento em educação, pode se dar o apoio para as comunidades nessa área, no entanto não impondo nosso sistema. Deixando eles funcionarem da forma que eles considerarem importante para eles, tendo um calendário próprio, misturando mais a vida com a escola, podendo ter uma escola ou na sua própria língua indígena ou bilíngüe, mas evitar que o sistema continue colaborando para o desaparecimento das línguas. É uma série de questões, por exemplo, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, as comunidades poderiam (e elas têm conhecimento para isso) trabalhar os viveiros e multiplicar a quantidade de floresta no Brasil. Então, no futuro, a gente tem várias estratégias que podem ser muito positivas como os povos indígenas.

E o que acha necessário para que o Plano Nacional do MST se concretize?

Ceres: O Plano é uma proposta de médio e longo prazo, e mais do que uma ação de plantio de árvores, ele provoca a gente a pensar processos que vão nos levar a mudanças de comportamento de relações concretas. Por isso não é uma coisa rápida e tampouco é um processo de escapismo de preparar etapas, então acredito que o plano em si é fazer pensar, refletir, e a gente poder e ir ajustando tudo isso ao longo do tempo.

Já iniciamos essa caminhada faz alguns anos, estamos quase completando dois anos desse grande desafio do plano, que se coloca aí para se construir em dez anos. Há um processo muito bonito de formação, de politização, de conscientização, e de multiplicação dessa sensibilidade em relação a essa necessidade de a gente massificar o plano dentro dos nossos territórios. A gente tem sido acolhido pelo nosso povo com muito entusiasmo para essa ação, e isso nos deixa bastante seguros de que a gente realmente acertou uma pauta de que representa uma necessidade, mas que também representa algo que cativa a vontade e o sonho dos camponeses e das camponesas de construir um meio ambiente sustentável, equilibrado e diferente daquilo que foi destruído e segue sendo pelo agronegócio e pelo capitalismo.

Ações do MST relembram da importância do plantio de árvores e produção de alimentos saudáveis. Fotos: Carlinhos Luz e Missias Bezerra e Alex Barro

Não me parece que o nosso grande desafio é seguir organizando, seguir motivando o nosso povo a se incorporar nos processos, sejam os processos de formação política, técnica, prática, para a constituição dos nossos viveiros, das nossas mudas, organizar processos de cooperação dentro dos assentamentos, dos acampamentos, que nos permitam efetivamente multiplicar, massificar a nossa condição de plantar e de produzir árvores. Acho que esse é o nosso grande desafio para sempre, não só nessa pauta do plano do plantio de árvores, mas na nossa pauta da transformação da sociedade como um todo.

** As entrevistas foram editadas por questão de tamanho e/ou clareza, mas disponibilizaremos os áudios na integra.

*Editado por Solange Engelmann

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