Restingas, mangues e saúde da população sob novo golpe do Ministro Salles

Da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)

Assistimos a mais uma movimentação anti-ambiental articulada pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles segunda-feira passada, 28 de setembro de 2020. Foram revogadas duas Resoluções estabelecidas em 2002 pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) – nos. 302 e 303 – as quais protegiam reservatórios de água, restingas e mangues por meio da delimitação de Áreas de Proteção Permanente (APPs). 

Na mesma sessão, o Conama também anulou  a Resolução no. 284, de 2001, referente à exigência de licenciamento para empreendimentos de irrigação, e alterou a Resolução no. 264, de 1999, que vetava a incineração de resíduos domiciliares brutos, resíduos de serviços de saúde e agrotóxicos em fornos rotativos de produção de cimento.

A suspensão dos efeitos das decisões do conselho veio no dia seguinte. Em decisão liminar expedida pela juíza federal Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23a Vara Federal do Rio de Janeiro, a justiça deu decisão favorável à ação popular movida contra a União e baseada no direito constitucional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. 

Os episódios recentes indicam que, a despeito do gravíssimo contexto da pandemia do coronavírus – o mundo ultrapassou a marca de um milhão de mortes pelo vírus esta semana, mais de 140 mil delas aconteceram no Brasil –, seguem a pleno vapor as investidas do governo brasileiro contra as salvaguardas referentes à natureza e às populações e comunidades tradicionais, povos originários e comunidades periféricas negras urbanas. 

A arena ainda está armada, mais investidas virão. Por essa razão, a RBJA lança esta nota política e técnica convidando organizações, articulações, campanhas, grupos de pesquisa, movimentos sociais, associações, redes, militantes de todo o País a assinarem conosco estas palavras. Denunciamos os riscos e os interesses por detrás das tomadas de decisão do Conama esta semana, e reafirmamos nosso compromisso atento com a justiça socioambiental e contra o racismo estrutural e ambiental que opera nas mais diferentes esferas de poder deste País. 

Assine a carta conosco aqui.

A destruição de restingas, mangues, reservatórios de água, agricultura familiar, populações e comunidades é crime ambiental e precisa ser interrompida, não tratada com permissividade!

A  revogação da Resolução no. 303 extingue regras importantes para todos os biomas e especialmente para a zona costeira no momento em que vemos o aumento exponencial das queimadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal decorrente, em grande medida, do processo de desregulamentação e enfraquecimento dos órgãos de controle e fiscalização ambiental. 

A desregulamentação beneficia diretamente o setor imobiliário e a carcinicultura, afetando centenas de comunidades tradicionais extrativistas que convivem e preservam os manguezais. As Resoluções nos. 302 e 303 de 2002 são, por exemplo, importantes instrumentos legais para a comunidade do Quilombo do Cumbe, no litoral cearense de Aracati, a 153 quilômetros de Fortaleza. Afetado pela carcinicultura desde o início dos anos 2000, o território necessita da proteção legal para fazer frente a invasores. 

De acordo com as marisqueiras locais, após a aprovação dessas normas, os riscos da atuação ilegal de grileiros aumentaram, mas reduziu-se o ritmo de assédio sofrido pelo quilombo. Ao favorecer os empreendimentos que sempre afetaram o território quilombola, reuniões como a de segunda-feira favorecem o aumento na comunidade de dificuldades em conter as possíveis perdas ambientais, e também as ocorrências de intimidação e criminalização da resistência popular às invasões de grandes empreendimentos. 

“O mangue é a vida do meu povo, é a minha vida. Eles chamam a gente de ‘atrasada’, porque a gente vive do mangue e não aceita a destruição dele. Eu prefiro ser atrasada a concordar com isso. O mangue é importante pro planeta todo, não só pro meu povo. Os atrasados são eles”, resume Cleomar Ribeiro, marisqueira e quilombola do Quilombo do Cumbe.

Além de destruir os espaços de trabalho e os modos de vida de quem preserva esses ecossistemas, a revogação das Resoluções nos. 302 e 303, fatalmente aprofundará os conflitos fundiários e ambientais na zona costeira, prejudicando as comunidades locais, regularizando e favorecendo as práticas de exploração predatória dos ecossistemas marinhos e costeiros.  Importa ressaltar ainda que a destruição de mangues, dunas e restingas deixa as áreas urbanas litorâneas mais expostas a efeitos negativos das mudanças climáticas.

Já a  revogação da norma que exigia licenciamento para projetos de irrigação – a Resolução CONAMA no. 284/2001 – retira da sociedade o direito de avaliar a viabilidade e a necessidade desses projetos e deve ampliar a pressão e conflitos pela água no País. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a agropecuária já utiliza 72% da água consumida no Brasil. 

A liberação desregulamentada do acesso à água para o agronegócio aumenta a desigualdade de poder no controle sobre esse recurso, posto que, o anulamento da regra pode vir a gerar falta de água para o abastecimento urbano e para a agricultura familiar em diferentes regiões do país.

A legalização de práticas industriais poluentes e nocivas para a saúde de toda a população precisa ser interrompida, não legalizada!

A aceleração da “boiada” do Ministro que hoje controla o Conama também incluiu, na fatídica reunião, a liberação da incineração em fornos industriais de resíduos tóxicos, como restos de embalagens e agrotóxicos. Essa medida abre espaço para o afrouxamento das normas ambientais estatais e a minimização dos riscos de contaminação química, atraindo empreendimentos de elevadíssimos potenciais contaminantes.

A resolução modificada já era permissiva e perigosa. Ela foi aprovada em 1999 para legalizar a incineração de resíduos poluentes em fornos de cimenteiras, algo não autorizado até então. As plantas de fabricação de cimento, depois da Resolução, passaram a cobrar taxas para destruir resíduos de outras plantas industriais, obtendo energia para si no processo.

Com a legalização da queima de resíduos domiciliares brutos, resíduos de serviços de saúde e agrotóxicos, a situação se agrava. De acordo com a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a queima de embalagens de agrotóxicos em cimenteiras representa mais um enorme risco para a saúde advindo de atividades industriais cuja fiscalização estatal deixa a desejar. A incineração de resíduos de venenos e as substâncias geradas pela queima de suas embalagens são novos elementos adoecedores, analisados em pesquisas de saúde coletiva e individual. 

A queima de embalagens plásticas, fabricadas a partir de resinas derivadas do petróleo, libera na atmosfera compostos como os hidrocarbonetos aromáticos – por exemplo: tolueno, xileno, benzoapireno. A maioria desses resíduos são cientificamente analisados como prováveis ou possíveis carcinógenos humanos. 

A queima de embalagens plásticas libera ainda dioxinas, furanos, e bifenilas policloradas (PCB). Eles são agentes que comprovadamente causam câncer em humanos e outras espécies animais, segundo classificação da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer. Os hidrocarbonetos e outras substâncias presentes na embalagem dos agrotóxicos, como metais pesados, também estão associados a outros problemas para a saúde – como, por exemplo, danos neurológicos. Dioxinas e furanos também estão associados a danos ao sistema imunológico, comprometendo a capacidade de defesa do organismo, além de poderem provocar desregulação hormonal.

Substâncias como as dioxinas se depositam no ambiente, contaminando plantações e cursos de água, e entram na cadeia alimentar devido à contaminação de alimentos, acumulando-se ao longo da cadeia trófica por serem poluentes orgânicos persistentes (POP), permanecendo longos períodos no ambiente, onde desencadeiam efeitos tóxicos em humanos e diferentes espécies animais. 

A adoção das tecnologias disponíveis pode reduzir a emissão de particulados mediante o uso de filtros, mas, perante a queima desses resíduos, não há uma tecnologia capaz de evitar a liberação na atmosfera de substâncias que causam câncer em humanos. Estudos demonstram a associação entre o ar contaminado por agrotóxicos e adoecimentos específicos como linfoma não Hodgkin (LNH) e esclerose lateral amiotrófica (ELA).

Além disso, substâncias como os metais pesados não são destruídas no processo de incineração, e em casos de co-incineração, onde são misturados com outras matérias-primas, essas substâncias são incorporadas na estrutura do cimento, representando um perigo para o ambiente e para a saúde das pessoas expostas ao material, particularmente trabalhadores e trabalhadoras, mesmo com o uso de equipamentos de proteção individual.

Conclamamos a sociedade a reclamar de volta o controle social e técnico-científico sobre as tomadas de decisão do Conama e protestar contra o desmonte da política ambiental realizado por este governo!

Desde o ano passado, o Conama sofre uma reformulação que mitiga a independência do órgão, atualmente presidido pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e composto por uma maioria de representantes do setor produtivo e do governo federal. Limitado o controle social e técnico-científico historicamente exercido sobre as tomadas de decisão do órgão, a votação desta semana evidencia o favorecimento de interesses de grandes cadeias produtivas nacionais em detrimento de direitos básicos de territórios, populações, comunidades tradicionais e do conjunto da sociedade.

De maneira geral, o  desmonte da política ambiental nacional extrapola o Conama e privilegia os interesse de setores produtivos com alto potencial degradador de ambientes, ecossistemas e comunidades socioterritoriais. Na mesma linha das medidas do Conama desta semana, veio antes a Instrução Normativa (IN) no 67, de 3 de agosto de 2020, da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União, da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, do Ministério da Economia. 

A norma “estabelece os critérios e procedimentos para a demarcação de terrenos marginais e seus acrescidos, naturais ou artificiais, por meio da determinação da posição da Linha Média das Enchentes Ordinárias – LMEO e da Linha Limite dos Terrenos Marginais – LLTM”. Os termos desta IN não escondem sua finalidade: entregar ao mercado de terras e à especulação imobiliária e financeira esse patrimônio vital precioso. 

A prioridade da destinação dessas áreas, porém, tem que ser de suas comunidades ribeirinhas, lavradoras e pescadoras, que são numerosas, muito antigas e protetoras desses ambientes, dos quais dependem absolutamente, em regime de uso comum. Do que dependemos também todos e todas nós, frente às mudanças e desastres climáticos crescentes.

Agronegócio, mineração, construção civil, capital financeiro e indústrias portuária, do turismo, de petróleo e de energia são os grandes beneficiários do racismo e da injustiça ambiental à brasileira. Com a justificativa de promoverem o crescimento econômico, essas atividades econômicas violam os direitos das populações locais e geram danos socioambientais histórica e explicitamente. As decisões sobre a implementação e/ou a expansão de projetos relacionados a esse setores no Brasil são orientadas, em primeiro lugar, a atender interesses de lucratividade empresarial, não a garantir o bem estar da sociedade como um todo. 

A destruição dos ecossistemas e da biodiversidade por eles provocada é também a aniquilação gradual dos modos de vidas e da diversidade sociocultural nos diferentes territórios do Brasil. Transformações geradas em territórios tomados por grandes projetos trazem de forma desproporcional o aumento da pobreza, da precarização da vida, e de diversas formas de violências. Essas consequências nefastas do dito crescimento econômico recaem principalmente sobre populações negras e indígenas ou descendentes desses povos. 

Apoiamos a suspensão dos efeitos das decisões do Conama desta segunda-feira, em decisão liminar expedida pela juíza federal Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23a Vara Federal do Rio de Janeiro. E seguimos atentas e atentos a movimentos da sociedade na contramão dessa avalanche anti-ambiental. Nosso país é constituído de múltiplos territórios, somos muitos povos, inúmeros modos de vida, e nossa maior riqueza deriva dessa diversidade.

A vida, em suas diferentes formas, estará sempre acima do lucro.

Assinam conosco:

Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

IMATERRA

Andréa M. Camurça

Ângela M. Ferreira de Medeiros

Bruno Santiago Alface

Carla Vieira

Diana Lacs

Margareth Gallo

Michela Airaghi
Patrizia Frosch

Ruben Alfredo de Siqueira

Assine a carta aqui.

*Fotografia de Capa feita em Curral Velho, Ceará, por Carla Vieira

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