O Dia da Alimentação num país assolado pela fome

Por Susana Prizendt

O mês de outubro está terminando e estamos acompanhando as últimas atividades da intensa programação que ele nos trouxe, já que é um mês que sempre se destaca no calendário anual por abrigar o Dia Mundial da Alimentação, comemorado no dia 16. Mas, em 2021, devido à crise aguda que nos assola, poderíamos pensar em renomear a data em questão para que se chamasse Dia Mundial da Fome, já que, mais do que a palavra alimento, a palavra fome teve amplo destaque nos debates realizados no período e na cobertura que a mídia fez sobre o tema.

E isto não ocorreu à toa, já que a quantidade de pessoas sem acesso a uma alimentação mínima, para manter suas vidas de forma adequada, cresceu no mundo em uma proporção semelhante ao aumento da riqueza dos poucos multibilionários que dominam o setor empresarial internacional.

Segundo o relatório O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021, elaborado pelas agências das Nações Unidas para levantar os dados referentes a 2020, cerca de um décimo da população global, ou quase um bilhão de seres humanos, sofre com uma grave insegurança alimentar e nutricional em seu dia a dia.

No Brasil, a quantidade de pessoas nessa condição também se amplia e é estimada em torno de 20 milhões de habitantes, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). O cenário é, na realidade, pior do que os dados divulgados revelam, pois, de 2020 para cá, a crise econômica, já ampliada pela pandemia, se intensificou ainda mais em nossa nação, arrastando mais e mais pessoas para a miséria.

E, para que não reste dúvida sobre o que significa estar sob tal nível de insegurança alimentar, é preciso enfatizar que se trata realmente de vivenciar, todos os dias, o sofrimento da fome. Trata-se de dormir sem o calor do alimento no ventre e acordar sem saber se sentirá este calor alguma vez ao longo do dia. Trata-se de ver seus filhos precisando de comida para seguirem crescendo e desenvolvendo-se e não ter nada para oferecer a eles. Trata-se de uma condição absolutamente desumana.

A presença constante da palavra fome nas discussões e no noticiário, nos últimos tempos – sobretudo no mês em que deveríamos debater a alimentação, em seus aspectos sociais, ambientais, culturais e até espirituais, dada a multidimensionalidade do tema –, é fortemente incômoda e gera profunda indignação em todos aqueles que se empenham na construção de uma sociedade justa e inclusiva.

Mas tal incômodo não é nem um pouco comparável aos efeitos dramáticos que a vivência da fome produz em quem está sem as condições mínimas de ter as refeições diárias de que necessita. Não ter o que comer é devastador para qualquer ser vivo e, no caso dos seres humanos, que têm dimensões emocionais, sociais e culturais que se somam a sua dimensão física – em uma complexa interação, ainda não tão bem compreendida pelo nosso conhecimento – a fome é uma experiência que desestrutura dramaticamente a pessoa que a vivencia.

Sem comida suficiente para manter seu organismo em funcionamento adequado, não é possível a ninguém ter condições de desempenhar seu papel como um ser social, como um cidadão ou uma cidadã, exercendo sua capacidade política. E é por isso que podemos afirmar que a fome é um instrumento de dominação dos mais vulneráveis pelos mais poderosos.

Em relação ao atual modelo ultraneoliberal, que impera no mundo, podemos afirmar que a ampliação ou manutenção de grandes proporções de famintos, sobretudo no sul global, trata-se de um projeto político para que as riquezas naturais e sociais do planeta possam ser apropriadas por uma minoria pertencente à elite econômica transnacional, enquanto às grandes massas da população restam as sobras, tão bem exploradas pelo marketing, através da filantropia de fundações e institutos criados pelas mesmas grandes empresas que mantêm o atual modelo excludente.

No momento de nossa civilização em que nos encontramos, a apropriação dos chamados bens da natureza tem um significado especial. À medida que a crise ambiental se intensifica, ameaçando nossa sobrevivência com a escassez de água potável, de terra fértil e de matéria biológica e mineral para a utilização da sociedade humana, é essencial definir como tais recursos serão geridos nos quatro cantos do planeta. E a elite econômica atual não deixa dúvida sobre o modo como está conduzindo esse gerenciamento. Ele é realizado com o objetivo de sugar tudo o que ainda possa ser sugado de nossa Pachamama, para que os membros dessa elite concentrem cada vez mais seu poder político e econômico, lançando-se até em aventuras extraplanetárias, enquanto os povos do mundo sofrem com as consequências trágicas de tamanha exploração do nosso planetinha Terra, a nossa Casa Comum, que tanto tem nos alertado para sua contínua desestruturação, nas últimas décadas.

No caso do Brasil, país símbolo de terra fértil, água farta, comida abundante… termos quase metade da população atual sofrendo com algum grau de insegurança alimentar, como também revela o estudo realizado pela rede PENSSAN, é uma contradição que parece não fazer nenhum sentido. Mas, ao contrário de ser um desvio eventual de rumo na nossa história recente – história que vinha sendo exitosa neste começo de século, já que havíamos saído do Mapa Mundial da Fome em 2014 –, o aumento intenso de famintos no país está totalmente interligado com o projeto político que está em curso, desde o golpe de 2016; com o modelo produtivo insustentável radicalmente estimulado nestes últimos tempos, com o papel que o capitalismo internacional definiu que desempenharíamos no cenário global.

Não é coincidência que estamos batendo recordes de exportação de grãos e carne no mesmo momento em que pessoas brigam por restos de ossos em açougues do país afora. Não é uma eventualidade que nosso território tenha a área equivalente à área da Alemanha só em plantação de soja e que a destruição de nossos biomas e da estrutura da vida dos povos dos campos, das florestas e das águas esteja chegando a um nível dramático, a ponto do atual governo ser denunciado internacionalmente como genocida por sua conduta inaceitável perante tais povos. Não é à toa que as políticas públicas que garantem os direitos básicos dos brasileiros e brasileiras estejam sendo desmontadas, enquanto a bancada ruralista aprova suas pautas, como o estímulo ao uso de agrovenenos e a descaracterização da política de reforma agrária, entre outras investidas contra a saúde e a renda da população.

O Agronegócio surfa na alta do dólar e nas isenções fiscais bilionárias, exportando recordes em commodities que tanto devastam nossos solos, florestas e povoados… E a agricultura familiar agoniza com a falta de apoio governamental e o sucateamento dos programas que haviam sido responsáveis justamente por nos conduzir para fora do mapa mundial da fome e eram referência em todo o planeta, como exemplos de políticas bem-sucedidas da promoção de segurança alimentar e nutricional e do combate à miséria. Os grandes bancos que operam em nosso território têm lucratividade recorde – em plena pandemia e em plena crise econômica no país –, ao mesmo tempo em que as famílias veem negada a elas uma renda mínima para sobreviverem dignamente.

Não é possível aceitarmos a existência da fome em nenhum lugar do mundo, dado o nível de recursos que a civilização humana possui hoje em dia, mas isso é ainda mais inaceitável em um país como o nosso.

Se o dia Mundial do Alimento está soando mais como o Dia Mundial da Fome, é hora de reagir com todas as nossas forças ao modelo explorador e injusto que está sendo imposto sobre nossas realidades. E uma parte expressiva da sociedade está se manifestando, tanto através da manutenção de redes solidárias para atender as parcelas da população em situação mais vulnerável, quanto para exigir que o atual governo e os setores da elite econômica e financeira, que o sustentam, parem com o genocídio que vêm praticando com sua política extremamente cruel e violadora de direitos.

A agenda do mês de outubro trouxe feixes de luz sobre tantas sombras, dando voz a iniciativas que protagonizam a luta contra a fome e pela busca de sistemas alimentares saudáveis, intercalando denúncias e anúncios em relação ao que temos vivido coletivamente no país.

Campanha Gente é Prá Brilhar, Não para Morrer de Fome, iniciativa criada em 2020 pelo Coletivo Banquetaço e abraçada por um amplo conjunto de organizações sociais, visando mobilizar a sociedade a agir frente a crise de fome que nos assola, realizou uma nova edição este ano e trouxe novos eixos em sua programação.

Além de promover novamente o Marmitaço, que se constitui de um mutirão de produção e distribuição de milhares de quentinhas para pessoas vulneráveis em muitas cidades do país – envolvendo uma rede colaborativa de agricultorxs, marmiteirxs, cozinheirxs e ativistas sociais – a edição de 2021 da campanha se renovou, ao promover também umCultivaço e um Compostaço, gerando a realização de um conjunto bem variado de atividades de plantio e de cuidado com o solo em nossos territórios.

Se partilhar alimentos com nossos irmãos e irmãs que estejam sem condições econômicas de adquiri-los já é uma ação essencial neste momento, estimular que cultivem suas hortas e regenerem a terra – seja em suas casas, suas escolas ou espaços comunitários –, é atuar para que conquistem mais autonomia e se integrem ao ciclo vital da natureza, insubstituível força geradora de tudo o que nos nutre, rompendo os laços que nos prendem a um sistema em que as grandes empresas alimentícias ditam o que comemos, de acordo com seus interesses financeiros.

Sabemos que o isolamento entre os povos do campo e os povos da cidade, alimentado pelo modelo produtivo baseado no latifúndio agroexportador e nas cadeias de alimentos ultraprocessados, é um dos fatores que nos impedem de compreender as origens da crise que enfrentamos e de termos forças para combatê-la.

Gente é Prá Brilhar, Não para Morrer de Fome vem atuando para promover a colaboração entre movimentos rurais e urbanos, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, o Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST e o Movimento Urbano de Agroecologia – MUDA, bem como entre os inúmeros coletivos e organizações que atuam no campo e na cidade, para que as ações na luta contra a fome se integrem para além do socorro emergencial, tão necessário neste momento, mas que sozinho não gerará as mudanças de que precisamos.

Se o governo federal e muitos dos governos estaduais e municipais estão promovendo medidas que não resolvem ou que agravam a grave crise que enfrentamos, são os movimentos sociais que seguem alimentando quem mais precisa, renovando nossas energias e abrindo os horizontes para superarmos o cenário duro no qual estamos submersos. O MST – que acaba de receber o prêmio Esther Busser Memorial Prize, da Organização Internacional do Trabalho da ONU, devido a sua atuação na pandemia – e o MPA, por exemplo, têm doado toneladas de alimentos que cultivam de modo agroecológico em suas lavouras, levando saúde para a população. O MTST vem criando cozinhas comunitárias e distribuindo refeições nutritivas aos que se encontram em estado de fragilidade nas comunidades. E, assim como eles, há uma rede solidária de organizações sociais se empenhando, diariamente, em acolher quem necessita de amparo neste momento.

A união de todos que estão nessa luta, integrando quem está na roça com quem está na urbe, traz a compreensão dos caminhos que os alimentos percorrem, permitindo a criação de circuitos diretos de distribuição, bem mais justos e fraternos que os circuitos varejistas neoliberais. E também desperta para as possibilidades de ampliarmos o cultivo agroecológico e o preparo de pratos saudáveis no campo e na cidade, valorizando o trabalho de quem semeia a terra e de quem prepara as refeições, em uma teia fortalecedora de nossa soberania alimentar.

É do solo ao prato que o alimento se transmuta e nos transmite a energia vital, para que possamos expressar integralmente nossa humanidade. Desse modo, o estímulo intenso ao plantio, à culinária e à compostagem deve ser um dos pilares do caminho que precisamos percorrer rumo a uma sociedade resiliente, capaz de enfrentar os desafios que o século 21 nos apresenta.

Plantar é sempre um ato de fé porque acreditamos na possibilidade da colheita. Plantar é um ato de amor porque renovamos a vida. Plantar é, sobretudo nos dias de hoje, em que o modelo produtivo dominante é o do Agronegócio explorador e concentrador de renda, um ato revolucionário!

Plantar uma semente é plantar esperança, como afirma Dona Miraci Pereira, no curta metragem Grão, documentário recém-lançado de Adriana Miranda que traz a realidade do Assentamento Roseli Nunes do MST e que é um presente para inspirar nossa jornada por uma vida em plenitude.

Já que as crises sanitária, econômica, política e ambiental, causadas pelo capitalismo excludente, vêm impedindo que as famílias tenham comida na mesa; é hora de reforçarmos os elos entre nós, povos que lutam nos campos, nas florestas, nas cidades e nas águas e nutrirmos nossos elos com a Mãe Terra, em sua incrível teia de biodiversidade. Convidamos todos e todas para afagarem a terra, presenteá-la com sementes crioulas, adubarem-na com composto orgânico, vitalizá-la com mudinhas e seguirem conosco na construção e na celebração de uma vida livre da fome. É tempo de luta contra o que nos oprime, mas é tempo de semear o que nos libertará de tão inaceitável opressão.

Que nossa fome de justiça, de solidariedade e de reconexão com a terra nos dê forças para botar um ponto final na injustificável crise que devora nossa população; que ela nos impulsione a cocriarmos o outro mundo possível pelo qual tanto ansiamos. Vamos dizer em alto e bom som que, assim como a semente da esperança de Dona Miraci, Gente é Prá Brilhar, Não para Morrer de Fome.

Viva a agricultura camponesa, viva o cultivo comunitário urbano, viva a fertilidade do solo, viva o alimento que brota e nutre nosso corpo, nossa coletividade e nossa alma!

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