Em entrevista, advogada aponta inconstitucionalidades e impactos da lei do Pacote do Veneno à biodiversidade e à saúde das populações rurais e urbanas

Por Roberta Quintino l Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

Com a alteração do marco regulatório dos agrotóxicos, no qual foi aprovada a Lei do Pacote do Veneno (Lei nº 14.785/2023), organizações, movimentos sociais e partidos políticos entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI). Os peticionários argumentam que a nova lei flexibiliza o registro e a fiscalização de agrotóxicos, concentrando excessivo poder no Ministério da Agricultura e enfraquecendo o papel dos órgãos de saúde e ambientais.

Em entrevista à Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a advogada Geovana Patrício, membro do coletivo jurídico Zé Maria do Tomé e da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares, destaca a gravidade da nova lei e explica os principais pontos de inconstitucionalidade do Pacote do Veneno.

Segundo Giovanna, o Congresso, ao revogar a lei anterior (Lei nº 7.802/1989), deixou inúmeras lacunas abertas, causando uma verdadeira insegurança jurídica. Além de desrespeitar princípios constitucionais essenciais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana e da precaução. Para ela, o Pacote do Veneno desconsidera o controle rigoroso sobre os riscos dos agrotóxicos à saúde e ao ambiente, permitindo o uso de venenos sem a devida reavaliação e monitoramento.

“Diante da fragilização do registro e reavaliação, como é o caso da retirada de critérios claros e objetivos acerca dos riscos à saúde e ao meio ambiente, os substituindo por uma análise subjetiva, abre-se a oportunidade para o agravamento da saúde da nossa população”, afirma a advogada Geovana Patrício.

Um dos pontos levantados pela ADI é a exclusão da Anvisa e do IBAMA do processo de fiscalização, o que, para Geovana, representa um grave retrocesso, uma vez que ao fragilizar normativas que protegem a população e o meio ambiente, abre-se espaço para a liberação indiscriminada de agrotóxicos. Ela cita ainda estudo que aponta os custos ao Sistema Único de Saúde (SUS) causados pela exposição aos venenos, um impacto financeiro que se agrava com a subnotificação de casos de contaminação.

“Estudo realizado no Paraná indicou que para cada $1 gasto na compra de agrotóxicos o Sistema Único de Saúde gasta $1,28 no tratamento apenas das contaminações agudas, este dado pode ainda estar muito aquém da realidade, visto que a subnotificação seria de 1 caso para 50 não contabilizados, assim como por não englobar as contaminações subagudas e crônicas, como é o caso do câncer”, aponta a advogada.

Para além dos impactos econômicos, Geovana destaca que a manutenção do Pacote do Veneno pelo STF pode trazer consequências devastadoras a longo prazo para a sociedade e o meio ambiente. Visto que, o aumento no uso de agrotóxicos comprometeria ainda mais a biodiversidade, a qualidade dos solos e a saúde das populações rurais e urbanas. Nesse sentido, ela reforça que o STF tem a oportunidade de evitar esse retrocesso e preservar o que resta de proteção ambiental e de saúde pública no Brasil.

Na entrevista, a advogada destaca que já existem precedentes no STF que podem influenciar a decisão da ADI. Em decisões anteriores, como na ADI 6137 e na ADPF 910, o tribunal se posicionou contra a flexibilização dos agrotóxicos, garantindo a proteção dos direitos constitucionais à saúde e ao meio ambiente. Ele pondera ainda a importância de ações legislativas e mobilizações populares para pressionar por políticas públicas que promovam maior vigilância e a redução de agrotóxicos no país.

Leia abaixo a entrevista completa:

Campanha: Recentemente, organizações, partidos políticos e movimentos sociais entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra o Pacote do Veneno. Porque o questionamento da Lei e quais são os artigos questionados na ADI?

Geovana: Os agrotóxicos são produtos sabidamente nocivos ao meio ambiente e à saúde, poluindo recursos hídricos, o solo e o ar, afetando a biodiversidade e tendo seus efeitos relacionados com a carcinogenicidade (câncer), a teratogenia (malformação fetal), a mutagênese (alterações genéticas), o autismo, o mal de Alzheimer, dentre outras doenças cientificamente associadas. 

Apesar disso, a lei n° 14.785/2023 alterou a Lei n° 7.802/1989, flexibilizando o processo de registro, de reavaliação e de fiscalização desses produtos, além de eliminar o modelo tripartite, retirando competência dos órgãos da saúde e do meio ambiente, com uma super concentração de atribuições para o Ministério da Agricultura e da Pecuária. Ademais, ao revogar a lei anterior, inúmeras lacunas ficaram abertas, causando uma verdadeira  insegurança jurídica. 

A ADI questiona os Art. 1º, caput e § 1º; Art. 2º ,caput e inciso VI, “a; b; c”; Art. 3º, § 10; Art. 4º, caput e § 2º, § 3º, § 4º; Art. 5º; Art. 6º; Art. 7º; Art. 16º, caput e §1º à §5º; Art. 17; Art. 27; Art. 28; Art. 29; Art. 30, §2º, Art. 39; Art. 49; Art. 50, caput e inciso de I a VI e Art. 65, inciso I, todos da lei n° 14.785/2023.

De que maneira o Pacote do Veneno viola os princípios constitucionais? 

A Constituição Federal tem como base o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo esse possível através da garantia de direitos como à saúde, meio ambiente, consumidor, assim como daqueles em situação de maior vulnerabilidade, como o direito das crianças e dos adolescentes, povos indígenas, quilombolas e camponeses. 

Ao fragilizar as normativas relacionadas a produtos que degradam o meio ambiente e que são danosos para a saúde há violação direta ao princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, dado que não há como se fruir plenamente de um estado de bem estar sem a preservação ambiental.

Quanto a isso, a legislação atacada deixa de observar o princípio da precaução, em que a não comprovação científica de que nenhum prejuízo ou perigo advirão já justifica a sua aplicação, assim como o princípio da prevenção, que procura não excluir os riscos que são certos, tentando, através de medidas acautelatórias, impedir o dano. Isto porque a retirada do IBAMA e da Vigilância Sanitária do processo de registro e de reavaliação reduz a capacidade de avaliação dos riscos. Da mesma forma o faz quando estabelece prazo cientificamente ínfimo para a reavaliação de produto e sua permissão de uso enquanto esta ocorre ou mesmo quando autoriza o uso de agrotóxicos, já registrados para controle de alvos biológicos, em culturas diferentes.

Ademais, há clara violação aos princípios constitucionais da moralidade, publicidade, legalidade e eficiência norteadores da administração pública (artigo 37, CF), visto que a lei atacada representa uma recusa do poder dever do Poder Público em agir para evitar a catástrofe humanitária e ambiental que assola diversas regiões e povos do país.

A nova lei afeta diretamente direitos fundamentais, como o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado. Como o Pacote do Veneno os ameaça?

Na atuação do Estado, ao tratar a saúde, não se deve apenas haver tratamento e cura de doenças, mas também e, principalmente, a prevenção destas e a promoção da qualidade de vida do indivíduo. Neste ponto, pode-se observar a estreita ligação que a saúde humana possui com um meio ambiente sadio.

Estudo realizado no Paraná indicou que para cada $1 gasto na compra de agrotóxicos o Sistema Único de Saúde gasta $1,28 no tratamento apenas das contaminações agudas, este dado pode ainda estar muito aquém da realidade, visto que a subnotificação seria de 1 caso para 50 não contabilizados, assim como por não englobar as contaminações subagudas e crônicas, como é o caso do câncer. 

Importante sinalizar que esses dados foram coletados dentro de um cenário em que havia legislação mais protetiva. Ou seja, a redução de parâmetros que visam resguardar a saúde humana e o meio ambiente, como a retirada de atribuições de análise e fiscalização dos órgãos competentes por essas áreas, é uma renúncia do Poder Público de sua obrigação de resguardar a vida e os componentes que a possibilitam. 

Existem precedentes no STF ou em outros tribunais que possam influenciar a decisão sobre essa ADI? Como essas decisões anteriores podem impactar o julgamento?

A jurisprudência do STF corrobora com a necessidade de atuação protetiva, como é o caso da ADI 6137, que questionava a constitucionalidade da Lei do Estadual do Ceará nº 16.820/2019, que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos, em que a relatora, Excelentíssima Ministra Cármen Lúcia, ressaltou que a defesa do meio ambiente impacta diretamente sobre a manutenção da saúde humana. 

A egrégia ministra, na ADPF 910, apontou na mesma direção quanto à necessidade de regulação criteriosa face aos riscos inerentes a esses produtos, visto seu alto potencial de danos. A referida arguição tinha como objeto normas pelas quais foram implementadas alterações no Decreto n. 4.074/2002 pelo Decreto presidencial n. 10.833/2021, que regulamentava a Lei n° 7.802/1989, agora revogada pela aqui questionada Lei nº 14.785/2023. A eminente ministra considerou a retirada tripartite de atribuições para determinar os limites máximos de resíduos e os intervalos de segurança de aplicação de agrotóxicos e afins, como um “nítido retrocesso socioambiental”, considerando estar “evidenciada a urgência na proteção da saúde, do meio ambiente equilibrado ou desenvolvimento sustentável”. Complementa afirmando a importância em “ter presente que a atuação conjunta, o diálogo institucional e a cooperação técnica e multidisciplinar contribuem para o aperfeiçoamento das políticas públicas estatais e conferem maior eficácia ao princípio constitucional da eficiência e aos princípios da prevenção e precaução antes mencionados.”

Já na ADPF 656-MC, de relatoria do ministro aposentado Ricardo Lewandowski, que ponderava os riscos da utilização de agrotóxicos constantes na Portaria 43/2020, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), assentou-se a proibição de retrocesso socioambiental e a incidência do princípio da precaução, visto que “Permitir a entrada e registro de novos agrotóxicos, de modo tácito, sem a devida análise por parte das autoridades responsáveis, com o fim de proteger o meio ambiente e a saúde de todos, ofende o princípio da precaução, ínsito no art. 225 da Carta de 1988”. 

Desta forma, fica claro que já há consolidada jurisprudência da Corte, em que se reconhece a inconstitucionalidade de medidas que fragilizam a legislação de agrotóxicos, o que deve ser observado pelos Nobres Ministros na análise da ADI 7701.

Quais seriam os impactos a longo prazo para a sociedade e o meio ambiente caso o STF decida manter a constitucionalidade do Pacote do Veneno?

A manutenção de tão nefasta legislação representa um probabilíssimo aumento vertiginoso no registro e, consequentemente, consumo de agrotóxicos, agravando a contaminação do solo, da água e do ar, o que, necessariamente irá se desdobrar em uma intensificação do adoecimento da população, visto que os agrotóxicos afetam o sistema nervoso – com alterações que vão desde as neurocomportamentais até casos de suicídios; afetam o sistema respiratório, com doenças que se estendem da asma à fibrose pulmonar, afetam o fígado – com ênfase nos casos de hepatopatias tóxicas crônicas e podem causar alterações na reprodução humana, como infertilidade masculina, abortamento, malformações congênitas, parto prematuro e baixo peso de recém-nascido, além do que estão amplamente relacionados à incidência de cânceres.
Não por menos que o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) recomendou, em nota técnica de 2015, o estabelecimento de ações que visem à redução progressiva e sustentada do uso de agrotóxicos, e, em nota técnica de 2022, pontuou que nova lei de agrotóxicos, que convencionamos chamar de Pacote do Veneno, facilita a liberação de agrotóxicos nocivos à saúde humana e o meio ambiente, aumentando os riscos de câncer e contaminação dos ecossistemas.

O Brasil atualmente é líder mundial no uso de agrotóxicos, sendo que das substâncias permitidas 30% são proibidas na União Europeia (EU), justamente por seus efeitos nocivos. Dos 10 agrotóxicos mais vendidos no país, 5 são proibidos na Europa, dentre eles a atrazina, que está relacionada ao câncer de estômago, linfoma não Hodgkin, câncer de próstata, câncer de tireoide, câncer de ovário, mal de Parkinson, asma, respiração com ruído, infertilidade, baixa qualidade do sêmen, malformações congênitas e danos a células hepáticas.

Diante da fragilização do registro e reavaliação, como é o caso da retirada de critérios claros e objetivos acerca dos riscos à saúde e ao meio ambiente, os substituindo por uma análise subjetiva, abre-se a oportunidade para o agravamento da saúde da nossa população. 

Qual é a expectativa em relação ao julgamento dessa ADI? Acredita que o STF pode adotar uma postura mais restritiva quanto aos agrotóxicos no Brasil?

Há a expectativa de que os Ministros, em observância à firme jurisprudência já estabelecida, julguem a ADI 7701 integralmente procedente, de forma a resguardar os princípios que sustentam a nossa Constituição. 

Diante do desequilíbrio de forças que não permitem à sociedade uma maior proteção quanto aos efeitos deletérios dos agrotóxicos, se faz de extrema importância que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Carta Magna, atue para que o princípio da dignidade da pessoa humana, e os direitos que o sustentam, sejam respeitados. 

Na sua avaliação, além da ADI, que outras ações ou estratégias jurídicas podem ser adotadas para combater o Pacote do Veneno e promover legislações mais alinhadas com a proteção dos direitos constitucionais e ambientais?

Encontra-se, desde 2016, em julgamento a ADI nº 5553, que visa a declaração da inconstitucionalidade das cláusulas 1ͣ e 3ͣ do Convênio no 100/1997, que prevê redução de 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas saídas interestaduais de agrotóxicos especificados, e dos itens impugnados da Tabela do IPI, do Decreto 7.660, de 23 de dezembro de 2011, no pertinente à isenção total de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a substâncias relacionadas a agrotóxicos, posto essas refletirem ofensa à seletividade tributária, à proteção do meio ambiente e da saúde humana.

Com Audiência Pública agendada para o dia 05 de novembro deste ano, o debate perpassa justamente sobre o sopesamento entre a proteção da saúde e do meio ambiente e o incentivo de produtos nocivos que são utilizados primordialmente na produção de commodities, como soja, milho, cana-de-açúcar e gado. Ou seja, além de os produtos que terão impactos significativos não se voltarem para a alimentação dos brasileiros, o fim dos benefícios impactarão apenas o lucro de seus produtores, por seu valor ser definido pelo mercado exterior. 

Por conseguinte, o debate realizado nesta ação acaba por resvalar na discussão acerca da constitucionalidade do Pacote do Veneno, pois estão em jogo substancialmente os mesmos princípios e direitos. 

Indispensável que a população se aproprie da temática, incidindo junto legislativamente em âmbito municipal, estadual e federal para que leis mais protetivas sejam delineadas, assim como que políticas públicas promovam maior vigilância relacionada à presença de agrotóxicos e sua redução na agropecuária. 

*Geovana Patrício, é advogada, assessora do deputado estadual Renato Roseno (PSOL/CE), e membro do Coletivo Jurídico Zé Maria do Tomé e da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares.

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