10 anos da Campanha contra os agrotóxicos: Pensar agroecologia é pensar a autonomia dos povos

Para demarcar seus 10 anos de existência, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida realizou, entre os dias 12 a 15 de abril, diversas atividades on-line.

Por Iris Pacheco

Durante a semana de 12 a 15 de abril, várias atividades on-line marcaram os 10 anos da Campanha, reafirmando a Agroecologia como um modelo de enfrentamento ao agronegócio no Brasil.  A Campanha articula diversas organizações, movimentos populares, pesquisadores/as compromissados com a luta contra o agronegócio e projeto de morte no país;  sujeitos coletivos que diariamente se comprometem com a construção de outro modelo de desenvolvimento para o campo, que tenha viabilidade produtiva e garanta a soberania alimentar e nutricional dos povos, e que  garanta cuidado e convivência com o meio ambiente e sua biodiversidade.

A semana foi movimentada e se iniciou com o Seminário ampliado: “Contra o Agronegócio, por comida, saúde e justiça social”, realizado de forma virtual entre os dias 12 e 14 de abril, com o objetivo central foi debater o lema dos 10 anos, aprofundando as linhas de ações e enfrentamento que se conectam diretamente com as necessidades atuais da conjuntura.

“A simbologia de um aniversário de 10 anos nos impele, necessariamente, a olhar para trás. E este olhar pode não parecer nada agradável: mais agrotóxicos registrados, maior consumo, mais intoxicações, agrotóxicos na água, no ar, na comida, nas escolas… E nas plantações, até mesmo naquelas que deveriam ser livres de venenos. Ao vermos, depois de 10 anos, o agronegócio dominando o cenário político, nos perguntamos: “Por que lutar? Valeu a pena? Vale a pena?”. Lutamos porque é necessário. Lutamos porque é da nossa natureza!”, afirma trecho da convocatória para as ações que se estenderão ao longo do ano de 2021.

Contra o Agronegócio, por saúde

O primeiro dia de Seminário enfocou a saúde, dimensão bastante refletida e elaborada ao longo destes anos da Campanha, considerando as relações entre o modo de produção do agronegócio e as consequências para a saúde e o ambiente. Inclusive na perspectiva de como a exposição a agrotóxicos favorece o surgimento de doenças, agrava as condições preexistentes e aumenta a vulnerabilidade para outras morbidades. 

O professor e pesquisador do Departamento de Geografia da USP, Allan Campos, explicou como o processo de modernização capitalista criou um arranjo entre a economia e a ecologia, do qual derivam inúmeras possibilidades de epidemias e pandemias sem controle.

“Economia-Ecologia constituídas através do processo de modernização ao longo do século XX engendraram um modo capitalista de produção de epidemias e pandemias, no solo mesmo na modernização agropecuária, na sua interface de destruição das áreas florestais e de drenagem de áreas úmidas. Cada fazenda do agronegócio, uma bomba microbiológica. Só a interrupção deste arranjo econômico-ecológico pode colocar fim ao modo capitalista de produção de epidemias e pandemias.” analisou.

Segundo Alan, diante de surtos altamente patogênicos, a única saída que esse sistema encontra é o abate sanitário em massa, para evitar que epizootias – doenças encontradas ocasionalmente em uma comunidade animal, mas que se dissemina com grande rapidez e apresenta grande número de casos – transbordem para populações humanas e deem origem a epidemias/pandemias. Confira no gráfico alguns exemplos

E por falar em pandemia, no atual contexto de crises, a pandemia da COVID-19 tem sido utilizada como pretexto para a necropolítica brasileira, criando oportunidade para a flexibilização da legislação de agrotóxicos, para a liberação em massa de produtos, por meio de normativas infralegais, e para a aprovação do Pacote do Veneno.

Quem trouxe essa reflexão foi  a pesquisadora da Fiocruz em Pernambuco, Aline Gurgel.As condições sociossanitárias são extremamente precárias; é importante entender quem são mais afetados pela pandemia, os riscos não são distribuídos iguais no território, existe um recorte de gênero, raça, etnicidade e classe”, denuncia.

Por outro lado, também foram apresentadas resistências que surgem do povo, tais como a formação de agentes populares de saúde e os cuidados populares em saúde como ação de solidariedade e como estratégias para existência da classe trabalhadora, frente a negação de direitos como o acesso à serviços de saúde, à alimentação, moradia e renda.

“Começamos com uma formação muito espontânea a partir da ideia de que a pessoa só se envolve nos processos se ela entender e participar deles, desde o que é a doença até estratégias para superá-la”, conta a professora da Fiocruz-PE, Paulette Cavalcanti, a partir do acompanhamento da formação de agentes populares de saúde e os trabalhos desenvolvidos nas comunidades, tais como= a produção de hortas comunitárias orgânicas e medicinais e banco de alimentos. 

Contra o agronegócio, por justiça social

Com o objetivo de inspirar outros territórios, no segundo dia de Seminário foram compartilhadas experiências de resistência construídas no Ceará que, por meio da Lei Zé Maria do Tomé, proíbe a pulverização aérea em todo território estadual, e no Rio Grande do Sul, cuja luta levou à suspensão do herbicida 2,4D após a contaminação pela deriva do veneno.

O historiador, ativista ambiental e social no Movimento 21, Reginaldo Ferreira de Araújo, rememorou a luta contra os agrotóxicos na Chapada do Apodi, a partir da figura de Zé Maria de Tomé, assassinado em 2010 com mais de 20 tiros à queima roupa. No dia 20 de novembro de 2009, a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte promulgou a Lei 1.278 que proibia a pulverização aérea no município. No entanto, no dia 20 de maio de 2010, a lei foi revogada. 

“Há 10 anos que estamos nesta luta contra os agrotóxicos, contra o agronegócio e não recuamos em nenhum momento. Tivemos uma ocupação no seio do agronegócio, o acampamento Zé Maria, com uma tentativa de transição agroecológica, pois é muito difícil fazê-la em meio ao agronegócio”, comentou.

Após vários anos de luta por terra, famílias camponesas ocuparam a área explorada por empresas que faziam uso abusivo de agrotóxicos e reivindicam o local para a produção de alimentos saudáveis. De forma recorrente, as famílias do acampamento ainda sofrem ameaças de reintegração de posse da área.

Criado em 2014, o acampamento Zé Maria do Tomé, em Limoeiro do Norte, na Chapada do Apodi, está dentro do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, que foi implantado no final dos anos 1980. Os movimentos e organizações denunciam que para este processo ocorreu a expropriação, expulsão e desmantelamento da produção de cerca de 6 mil famílias da região.

Para lembrar a data do assassinato e a luta contra o agronegócio na região, anualmente, movimentos realizam a Semana Zé Maria do Tomé. Este ano, por conta da pandemia, o evento ocorrerá de forma on-line, pelo YouTube do M21.

Outro resultado dessa luta foi a publicação em 9 de janeiro de 2019, da Lei Estadual nº 16.820/2019, chamada de “Lei Zé Maria do Tomé”, de autoria do deputado estadual Renato Roseno (PSOL/CE), a qual proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará. 

Do Nordeste para o Sul do país

Desde o Rio Grande do Sul, Álvaro Delatorre, do Setor Produção do MST e da Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (COCEARGS), denunciou a presença do capital na sua versão mais cruel sobre os territórios campesinos. “É uma disputa de território a partir de uma tecnologia de aplicação de agrotóxicos que é extremamente autoritária e desconsidera os efeitos colaterais. Aplicar veneno de aviação é mais barato do que pulverizar de outros métodos, porém as consequências que isso causa do ponto de vista da fauna, da flora e desequilíbrio ambiental não está na conta dos fazendeiros, está na conta da sociedade, do SUS, do judiciário…”

No ano passado, cerca de 20 famílias do Assentamento Santa Rita de Cássia 2 tiveram perdas em suas lavouras devido à deriva de agrotóxicos pelo ar. Além disso, diversas pessoas apresentaram sintomas de intoxicação, como enjoos e dores de cabeça. No dia 16 de março deste ano, um avião sobrevoou as casas e propriedades dos assentamentos, atingindo os plantios orgânicos, mesmo após uma determinação judicial emitida dia 12 de março, pela 9ª Vara Federal de Porto Alegre, que suspendia imediatamente o uso de agrotóxicos na fazenda vizinha aos assentamentos.

Emiliano Maldonado, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), relata que, no contexto de expansão do agronegócio e de necropolítica, os números de agrotóxicos aprovados já são mais de mil e que há uma luta para que os agentes sejam responsabilizados pelo veneno em nossa mesa. “Os agricultores se defrontam com uma série de empecilhos e trâmites burocráticos que dificultam a produção e comercialização dos seus produtos, como garantir a certificação de orgânicos. Há uma inversão de valores.” 

Em 2020, a Lei gaúcha n. 7.747, que há quase 40 anos impede a importação de agrotóxicos banidos ou não autorizados nos países de origem, foi ameaçada por uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 221) no Supremo Tribunal Federal. Uma ação encabeçada pelo DEM, com o apoio do agronegócio, esvaziando o debate democrático promovido pelo marco legal.

Embora, a justiça seja como uma serpente, só morde os pés descalços, como bem nos alertou Eduardo Galeano. Há brechas e possibilidades de acionar o jurídico e conseguir avançar em alguns casos com a consolidação de legislações que permitam controlar e reduzir o consumo de agrotóxicos nos territórios. Veja aqui como elaborar um projeto de lei estadual ou municipal para reduzir os agrotóxicos.

Contra o agronegócio, por comida

O agronegócio destrói heranças alimentares e culturas de plantio, promove a perda das sementes crioulas, de saúde e de tradição.Alimentação saudável e adequada é um direito humano. A sua violação tem sido agravada pela pandemia e a política genocida deste governo. Foi abordando essas realidades que caminhou o debate do último dia de Seminário promovido pela Campanha. 

Professor e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo Baiano – UFRB, Silvio Porto abordou como o agronegócio, embora seja produtor de commodities, se apresenta como quem produz comida. Segundo Porto, “o contexto que vivemos agora é fruto de uma condução política de pacto com o agronegócio aplicada nos últimos anos e que permitiu ao agronegócio se colocar como ‘sustentável’. É fundamental que a gente consiga ter clareza desse movimento para que possamos pensar um modelo de política que seja no sentido de criar e coibir o processo que não seja livre de transgênicos e agrotóxicos.”

“Pelos campos há fome, em grandes plantações”, o trecho da canção de Geraldo Vandré foi citado pelo Frei Sérgio, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) que abordou como o agronegócio é um espaço de poder econômico, midiático, social e territorial, que tem promovido grandes mazelas pelo país afora.

“Quando se conhece pessoas que passam fome, esses números são terríveis, pois cada um dele é uma pessoa. E fome é um negócio que dói. Fortalecer uma agricultura camponesa familiar, organizada politicamente, socialmente, acessando mercados sociais e institucionais, que envolvem políticas públicas robustas, é necessário.”

Outro aspecto fundamental abordado na discussão foram as desigualdades que permeiam a realidade das milhões de famílias em insegurança alimentar e nutricional, o que vai além do acesso à comida. A agrônoma e pesquisadora da FASE, Fran Paula, foi  incisiva em relação a isso:. “É importante discutir a fome para além do acesso aos alimentos. A fome não é um produto da pandemia e sim das desigualdades sociais, étnico-raciais que são históricas. E falar disso é falar de grupos que sofrem historicamente com racismo no Brasil, indígena e negro, como ele afeta a possibilidade de produção de alimentos por esses povos.”

Diariamente, o agronegócio usa distintas estratégias para minar as possibilidades de autonomia dos povos na produção e reprodução da vida em seus territórios. São ações que vão desde a contaminação do solo, das águas, até a expulsão destes povos de suas terras, deixando-os vulneráveis inclusive à situação análoga a trabalho escravo. “A produção de alimentos como uma estratégia antirracista, o capital e o agronegócio sabem disso”, comentou Fran.

Em 2020, 19 milhões de pessoas passaram fome no Brasil. Depois de sair do Mapa da Fome das Nações Unidas em 2014, retornamos. De acordo com a FAO, 37,5 milhões de pessoas viviam em situação de insegurança alimentar moderada no Brasil no período entre 2014 e 2016. Entre 2017 e 2019, porém, esse número chegou a 43,1 milhões.

Fran nos afirma que “está em curso um nutricídio, seja pelo não acesso ao alimento, seja pelo consumo de alimento de baixa nutricidade.” Lembrando Achille Mbembe, que conceitua necropolítica como o poder de decidir quem vai morrer e quem vai viver, ela ainda aponta que a omissão do governo nas ações que combatem a insegurança alimentar é necropolitica, que faz com que não só sigamos em um quadro de instabilidade social, mas também que se reabra uma chaga histórica que demarca a desigualdade social, de gênero e de raça.

“Por fora, a cor da fome no Brasil é preta. E a superação do racismo precisa estar na centralidade da erradicação da fome. É urgente pensar sistemas alimentares que pensem em projetos que promovam a alimentação saudável. Comer e comer bem não pode ser um privilégio de poucos neste país”, concluiu.

Em março, foi lançada a campanha nacional de financiamento coletivo Tem Gente com Fome, uma iniciativa da Coalizão Negra por Direitos inspirada no poema de Solano Trindade, “Se tem gente com fome, dá de comer!” e que busca mobilizar a sociedade para ações concretas que irão beneficiar famílias em vulnerabilidade nas periferias do país.

Live 10 anos

Para fechar a rodada de ações da semana, na quinta-feira, 15, foi realizada uma Live comemorativa aos 10 anos da Campanha e de pré-lançamento do dossiê ”Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida”.

A atividade contou com a participação de representantes de diversas organizações, entre elas: Islândia Bezerra – Presidenta da ABA, Gulnar Azevedo – Presidenta da Abrasco, Guilherme Franco Neto – Fiocruz, Fernando Carneiro da Abrasco e Carlos Eduardo de Souza Leite (Caê), integrante do Núcleo Executivo da ANA e da coordenação da ONG Sasop, na Bahia. Além dos integrantes da Campanha Contra os Agrotóxicos, Juliana Acosta, Alan Tygel e Jakeline Pivato.

Durante a live, foi lançado o clipe da canção “Samba da natureza”, do saudoso cantador sem terra Lupércio Damasceno. Confira!

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